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Foto do escritorOscar Nestarez

Quando livros de horror falham?


A noite vem caindo e o silêncio a persegue. Em uma casa isolada no campo, um rapaz lê um gibi. Está sozinho, seus pais foram até a cidade para comprar comida. A sala em que o rapaz está vai escurecendo, e uma luminária precisa ser acesa. A história em quadrinhos o absorve; ele não percebe o silêncio lá fora, não percebe que os pássaros deixaram de cantar. E não repara na silhueta. Está na janela logo acima de seu sofá, mais escura que a noite. É quase humana. Não tem olhos, mas o encara – o saboreia. Ao virar uma página, o rapaz a vislumbra e se sobressalta. Percebe a ameaça, fica apavorado. No momento culminante, porém, a frustração: os pais chegam, acendem a luz e a silhueta era um arbusto em forma de monstro. Fim.

Fãs de histórias assustadoras conhecem bem a sensação de ler algo assim. É como uma rasteira. Ou um simples peteleco que faz desabar toda a expectativa construída ao longo da história. Na gramática do horror, essa expectativa tem nome: é o suspense, assim batizado justamente pelo estado de suspensão em que nos encontramos enquanto esperamos pelo barulho do tiro, como ensinou Alfred Hitchcock. O problema é que muitas vezes o tiro soa como uma biriba, ou nem sequer soa. Sai pela culatra. Por que isso acontece? Por que às vezes saímos frustrados de uma história supostamente arrepiante? Nesta coluna, gostaria de discutir três possibilidades, tendo em vista a estrutura dessas narrativas. Claro, aqui sempre considero a carga de subjetividade que é indissociável da recepção do horror – cada um de nós experimenta o assombro à sua própria maneira, de acordo com suas próprias vivências. No entanto, há elementos e procedimentos indispensáveis, sem os quais – ou caso sejam mal manejados – o propósito do horror (do latim horrere, arrepiar) falhará desde o início.

Também estou consciente das polêmicas. É bem possível que você não enxergue as mesmas falhas que eu nos exemplos mencionados a seguir. Porém, aqui me coloco como alguém que, por dever do ofício, precisa radiografar a obra literária de horror – e que encontra uma fratura aqui, um osso trincado ali, um deslocamento acolá, resultando em um trabalho inquestionavelmente frágil. 1. Quando os personagens são tolos Naquela história do início, o rapaz que lê o gibi é o veículo de nossas sensações. É por meio dele que sentimos a ameaça da silhueta, é com ele que sofremos, que experimentamos o arrepio. Isso, claro, se nos conectarmos ao personagem. Para tanto, ele precisa ser cuidadosamente elaborado. Jamais poderá ser unidimensional, simplório ou caricato. A não ser que a história peça isso e que tal construção seja consciente.

Muitos livros de horror falham nesse ponto, o que acaba sendo catastrófico no geral. Não importa se a atmosfera for bem construída, se o ritmo da narração for bem conduzido, se as cenas assustadoras forem bem compostas: sem um personagem que desperte nossa empatia, tudo vai por água abaixo. Um exemplo é o personagem passivo e tolo. Geralmente protagonista, muitas vezes o próprio narrador, é a pessoa que transita pela história como se jamais pudesse intervir na teia de acontecimentos. Nunca se antecipa, apenas reage a eles, e tamanha é sua torpeza que logo desejamos sua morte.

É o caso de David Ullman, narrador-protagonista do romance O demonologista (DarkSide), do canadense Andrew Pyper. Ullman é um professor universitário às voltas com o desaparecimento da filha. Acredita que foi levada ao inferno e parte em busca dela. O demonologista, de Andrew Pyper, DarkSide — Foto: Reprodução O romance tem outros problemas, como a trama mal costurada e cenas inverossímeis; mas a principal falha é o próprio Ullman, cujas decisões equivocadas – tomadas para que o enredo funcione – anulam qualquer traço de simpatia ou empatia de nossa parte. 2. Quando o livro é mais filme (ruim) do que livro Já faz tempo que o cinema “empresta” sua estrutura para a literatura. No horror, isso é ainda mais perceptível, dado que filmes do gênero fazem e sempre fizeram enorme sucesso. Muita gente resolve escrever horror por conta da influência cinematográfica. E não há problema algum nisso; pelo contrário, Stephen King e incontáveis ficcionistas provam como o intercâmbio entre as linguagens pode ser maravilhoso. A coisa complica quando o autor ou a autora não conhece bem os mecanismos literários do horror. Quando as histórias são desenvolvidas sem muitas referências além da sétima arte. Como resultado, acaba se “escrevendo” um filme – com grandes chances de ser um filme fraco. Li dessa forma o romance nacional Corpos secos (Alfaguara), escrito por quatro autores: Luisa Gleiser, Marcelo Ferroni, Natália Borges Polesso e Samir Machado de Machado. Nessa história de zumbis que se passa em um Brasil pós-apocalíptico, identifico dois problemas herdados do cinema: a montagem bagunçada, o que sacrifica o ritmo da narrativa e o suspense; e as cenas de horror derivativas. Ao lê-las, temos sempre a sensação de já tê-las visto (e não lido, percebam) antes – e mais bem executadas. 3. Quando a progressão é frágil ou não existe Aqui, estou falando de romances – o conto e a novela, formatos tão apropriados ao horror, ficam para outra coluna. E romances do gênero devem respeitar uma regra de ouro: a progressão. A linha mestra que os conduz precisa seguir para cima ou para baixo, sempre encadeando episódios que intensifiquem as sensações nos leitores. Essa linha jamais deve permanecer estática, horizontal. Não basta o mesmo núcleo de personagens por toda a história, os mesmos espaços nos quais ela se dá; a progressão, assim como a construção de personagens, é soberana. Há muitos livros em que essa progressão é capenga ou mesmo inexistente. Não seria um problema se se tratasse de um fix up, por exemplo, formato em que histórias independentes se passam em um mesmo cenário, em um mesmo ambiente, ou com personagens interligados. Em um romance tradicional, porém, a horizontalidade (chamemos assim) é fatal. Como exemplo, cito Saboroso cadáver (DarkSide), da argentina Agustina Bazterrica. Nessa distopia de horror em que os animais desapareceram e os humanos comem os próprios humanos, não há uma progressão de fato. É mais uma sequência de episódios, ou contos, cujo pano de fundo é o futuro que fundamenta a história.

Um fundamento um pouco frouxo, por sinal, dado que a eliminação de todos os animais impediria qualquer tipo de sequência da vida por aqui. No entanto, a autora sempre tem a prerrogativa da suspensão da descrença. Ainda assim, a narrativa é frágil: o protagonista, Marcos Tejo, também é passivo. Mas sua letargia é bem justificada, pois ele perdeu o filho recém-nascido e o pai, tão amado, está entrevado. A questão é que isso parece conveniente à função a ele atribuída: testemunhar os episódios de selvageria e brutalidade que se tornaram corriqueiros no universo do livro. Tejo transita de forma sonâmbula por esse mundo terrível, sem muito rumo, até seu "despertar" abrupto, em um desfecho que soou como pirotecnia. O famoso “isto foi de zero a cem muito rápido”. A linha da história não progride aos poucos; com um ângulo reto, vai da horizontal à vertical.

Por outro lado, Saboroso cadáver é um livro que toca em pontos sensíveis dos tempos atuais – a emergência climática, a desigualdade, o sofrimento animal. O problema – mais um – é que o faz sem sutileza. A brutalidade e a crueza são fundamentais para a autora, isso fica evidente, mas a "boa brutalidade", na literatura ou em outras linguagens, sempre traz algo que escapa aos olhos. E aqui nada escapa, está tudo à vista. Como aquele frustrante arbusto que observa o rapaz lendo gibi.

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