Por causa desta coluna e da minha pesquisa no geral, muita gente me pede recomendações de horror. Não só de livros, mas também de filmes, séries, quadrinhos e até de jogos eletrônicos (nem desconfiam de que meu último console foi um Nintendo Wii, lá se vão mais de dez anos).
Pensando nisso, de quando em quando vou compartilhar por aqui o que de melhor tenho lido e visto. Não serão listas exclusivas de horror: outros gêneros e vertentes vão entrar. A condição é que causem algum tipo de perturbação ou que tragam pelo menos uma atmosfera sinistra. A prioridade será a literatura, mas outras linguagens também aparecerão.
Neste mês, a lista é a seguinte:
1. Temporada de furacões (2021), romance de Fernanda Melchor
O impressionante romance da autora mexicana, publicado no Brasil pela editora Mundaréu, está mais para uma narrativa de crime do que de horror. Mas é sombrio e perturbador o suficiente para deixar qualquer fã do gênero de queixo caído. Trata do assassinato de uma figura conhecida como “a bruxa” em La Matosa, um povoado fictício no interior do México – a partir do crime violento, mergulhamos na realidade igualmente brutal das personagens ligadas a ele.
Marcado pela crueza e pelo desejo, o universo ficcional de Melchor é tão hostil quanto singular. A história tem uma estrutura ambiciosa: são muitos pontos de vista sobre os fatos centrais da trama, o que nos desorienta e desconstrói seguidas vezes as impressões iniciais que temos sobre personagens.
O estilo também impressiona, pois Melchor despeja a narração como um desabafo, sem divisão de parágrafos e com frases imensas, que se deslocam entre a primeira e a terceira pessoas e são repletas de gírias. Graças a essa organização, muitas vezes uma personagem é apresentada como vilã só para se revelar mais complexa no capítulo seguinte.
Minha única crítica, pequena diante da verdadeira façanha que é o romance, se relaciona à própria estrutura. Em certo momento, fiquei desnorteado de verdade e tive dúvidas a respeito de alguns eventos, já no desfecho da trama – o que me levou a conversar com outras pessoas que haviam lido para encontrar uma luz. Aliás, é o tipo de livro que rende um debate interminável, tamanhas as relações possíveis com realidades que conhecemos bem aqui no Brasil.
2. Terráqueos (2018), romance de Sayaka Murata
Foi uma leitura que fiz em 2023, mas que não havia comentado por aqui. Publicado pela Estação Liberdade, Terráqueos, da japonesa Murata, é uma espécie de romance de formação de Natsuki, a protagonista, cuja vida acompanhamos em dois momentos: primeiro, sua infância, marcada por devaneios como a crença em poderes mágicos, seres extraterrestres e bruxas; depois, a fase adulta, na qual os devaneios permanecem.
Vamos compreendendo que eles são, na verdade, mecanismos de fuga desenvolvidos para lidar com uma sociedade opressora ― e com traumas desencadeados por abusos de diversas ordens.
É um livro estranho e magnético, cuja narração em primeira pessoa se reveste do mesmo matiz alienígena que encontramos na trama, em especial nas passagens tensas da história — que não são poucas. Destaco a cena do abuso sofrido por Natsuki, a protagonista, e o desfecho absolutamente gore.
Também me parece o tipo de obra que espelha a condição japonesa contemporânea. Não só pelo contexto social hostil do qual Natsuki foge ou se esconde, ou mesmo ao qual se recusa a pertencer, como alienígena que se julga ser; mas também pela forma como Sayaka
Murata trata de sexo e de impulsos essencialmente humanos. Uma leitura memorável, imaginativa e desafiadora em termos de gênero.
3. The conspiracy against the human race: A contrivance of horror (2010), ensaio de Thomas Ligotti
O estadunidense Thomas Ligotti é conhecido como um dos maiores nomes da literatura de horror das últimas décadas. Considerado seguidor e até reformador da estética do horror cósmico de Lovecraft, teve apenas uma obra publicada no Brasil: Canções de um sonhador morto & Escriba-sinistro, dupla coletânea de contos publicada em um só volume pela Suma.
Suas histórias são marcadas pelo sobrenatural e por uma visão de mundo absolutamente pessimista. Seus protagonistas, sem exceção, caminham sempre para o completo aniquilamento, obliterados nos buracos negros de um universo ficcional que jamais sequer considera suas existências — o cerne do cosmicismo do autor de O chamado de Cthulhu.
As bases filosóficas da ficção de Ligotti estão no longo ensaio The conspiracy against the human race: A contrivance of horror (A conspiração contra a humanidade: Uma criação do horror, em livre tradução), publicado em 2010. O autor parte de uma ideia central emprestada do filósofo norueguês Peter Wessel Zapffe: a de que a consciência humana configura um terrível paradoxo, já que, ao mesmo tempo que sabemos existir, damos um jeito de fingir que essa existência não é apenas dor e ruína.
Eis a conspiração, o ataque à nossa condição verdadeira — sem essa autossabotagem de nossa própria consciência, e vítimas dos mecanismos malignos e insaciáveis que movem o mundo, seríamos obrigados a aceitar que o melhor a fazer é encerrarmos a aventura humana.
Alguns o fazem e fizeram pelo suicídio; mas Ligotti admite a dificuldade do ato, então segue o caminho do antinatalismo. Nesse sentido, é o manifesto mais eloquente que existe, fundamentado em outros pensadores do pessimismo como os alemães Arthur Schopenhauer e Philip Mainländer. E uma leitura assombrosa, da qual dificilmente saímos os mesmos.
4. As bestas (2022), longa-metragem de Rodrigo Sorogoyen
Saindo da literatura, me deparei com este grande filme do espanhol Rodrigo Sorogoyen, que estreou em janeiro no Brasil. Aqui, temos a história de um casal parisiense que se muda para um povoado em uma região rural da Galícia, no noroeste da Espanha, em busca de uma vida mais simples e bucólica.
Porém, quando uma empresa geradora de energia eólica tenta comprar toda região para nela instalar turbinas, os franceses recusam o negócio. Cria-se, então, um conflito com os outros moradores do local, que querem a venda.
Há algo de perturbador nessa história, que, no fundo, trata de pertencimento à terra. A quem pertence mais aquele pedacinho da Galícia? Aos nativos que, cansados da vida que levam, querem vender tudo e comprar um táxi em Madri? Ou ao casal estrangeiro que escolhe o local para nele viver até o fim de seus dias?
O conflito está no centro do filme e é manuseado com imensa habilidade, por meio de sutilezas que se acumulam até transbordarem. É o tipo de trama que acompanha a gente por um tempo depois de subirem os créditos. Imperdível.
5. Gilles Hamesh, detetive (totalmente) particular (2003), história em quadrinhos de Alejandro Jodorowsky e Durandur
Para finalizar, um quadrinho “proibidão” do multiartista chileno Alejandro Jodorowsky, com arte de Michel Durand, que usou o pseudônimo Durandur porque “não quis se identificar com medo de que sua mãe o reconhecesse como responsável pela obra”, de acordo com palavras de Jodorowsky na apresentação.
Publicado no Brasil pela Veneta, Gilles Hamesh é o puro suco da nojeira, da podridão e do desvario que o chileno já havia servido, por exemplo, no romance Quando Teresa brigou com Deus (2003, Planeta). São pequenas histórias protagonizadas pelo detetive particular Gilles Hamesh, de métodos bem controversos. É um episódio mais escabroso do que o outro, e a potência criativa dos roteiros de Jodorowsky se amplifica graças ao traço feroz e sujo de Durand.
É verdade que o trabalho, por chafurdar nos extremos da escatologia, se esquiva de espelhamentos ou conexões mais profundas. Mas é o tipo de leitura que, graças ao vulcão imaginativo chamado Jodorowsky, perturba satisfeitos e satisfaz perturbados.
A ressalva vai para algumas soluções da tradução de Alexandre Barbosa de Souza: como a linguagem do quadrinho é a das ruas parisienses, optou-se por muitas gírias, o que deixa o texto datado (eu trabalharia com algumas notas de rodapé). No mais, uma leitura pervertida e muito divertida.
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