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Punks em Fortaleza, quimeras no sertão: a sólida estreia de um romancista cearense

  • Foto do escritor: Oscar Nestarez
    Oscar Nestarez
  • há 2 dias
  • 5 min de leitura

'Aranha movediça', obra de estreia do escritor cearense Moacir Fio, narra as investigações de um crime na cena punk de Fortaleza — Foto: Divulgação
'Aranha movediça', obra de estreia do escritor cearense Moacir Fio, narra as investigações de um crime na cena punk de Fortaleza — Foto: Divulgação

Aranha movediça, primeiro romance do cearense Moacir Fio, não demora a justificar seu título. São diferentes linhas narrativas que vão correndo paralelamente, sendo duas delas situadas no presente e outra distante no tempo, em meados do século 18, até se entrecruzarem, como em uma teia. No centro dessa estrutura, um mistério: a morte de João Valdenir, conhecido como Jota do Lixo, uma figura proeminente da cena punk de Fortaleza nos anos 80. À medida que a jornalista Alessandra Moretti, responsável pela primeira linha narrativa, um podcast investigativo, vasculha o passado para esclarecer o que parece ter sido um assassinato, novos mistérios vão surgindo, e nem todos deste mundo. Os outros ramos narrativos são mais convencionais. No segundo, Carlos Eduardo, um homem que na infância e na adolescência foi próximo de Jota, conta sua história; e outro ramo, em terceira pessoa, relata o confinamento de uma mulher, Josefa, em uma fazenda de séculos passados, enquanto aguarda a chegada do marido a quem foi prometida pelo pai, um homem poderoso na região (a quem nos referiremos mais adiante). Entremeando essas linhas, há breves inserções de poemas, letras de música e trechos de diários.


À primeira vista, como leitores, nossa sensação é de desorientação. Em um bom sentido, pois com frequência nos fazemos a pergunta inescapável: “onde é que isso vai dar?” A prosa de Fio justifica o nosso envolvimento, pois está à altura da ambiciosa estrutura do romance. O autor se sai bem seja compondo um roteiro de podcast, seja dando voz a um professor de cursinho homossexual de meia idade, seja emulando uma alambicada narração oitocentista, ainda que vez ou outra escape algum artificialismo.


O maior trunfo, no entanto, é o podcast. O formato acomoda bem um didatismo que, de outra forma, seria prejudicial à história. Por meio dele, conhecemos em detalhes a cena underground dos anos 80 em Fortaleza com uma impressionante riqueza de detalhes. Personagens vívidos desfilam à nossa frente, ainda que envoltos nas névoas do mistério. Em especial Maca e Nhewó, os mais próximos de Jota, companheiros de sua banda, cujas relações em certo ponto ultrapassam a amizade. Todos surgem de maneira ordinária, como jovens de classe média baixa e anarquistas — punks, de fato. E é fascinante notar como vão se convertendo em outra coisa, nada mundana, até que um incêndio no barracão em que a trupe se reunia mata o rapaz, deixa Maca catatônica e causa o desaparecimento de Nhewó.


Até aí, seguimos desorientados e sequiosos de respostas, que começam vir das outras linhas narrativas. No relato do século 18, a confinada Josefa testemunha a chegada à fazenda de uma misteriosa mulher, apelidada apenas de Moça, que passa os dias dormindo e as noites em claro. Logo Josefa faz uma descoberta espantosa: quando o sol se vai, Moça se transforma em uma suçuarana e, como uma bacante nas florestas de Dionísio, percorre livre o sertão cearense, fornicando e destroçando animais. Josefa, primeiro encantada e depois apaixonada, se junta a ela; apenas assim, recorrendo ao sobrenatural, consegue se livrar da prisão na qual o pai, a madrasta e a sociedade da época a jogaram.


A investida no fantástico é outro acerto de Fio. Se até este momento Aranha movediça funcionava como uma narrativa policial com flertes experimentais, a entrada de Moça em cena expande o romance. Pois dá relevo à enigmática Cococi, que hoje é conhecida como uma cidade fantasma no Sertão dos Inhamuns, interior do Ceará. Servindo-se de personagens históricos, como o coronel Francisco Alves Feitosa — fundador da cidade no início do século 18 e aqui transformado no pai de Josefa —, Moacir Fio arrisca inventar uma mitologia própria para uma região que ainda hoje atrai fascínio e curiosidade. Cococi foi o centro do poder da família Feitosa, que por décadas aterrorizou o sertão cearense; com o declínio do clã, decaiu também a cidade, que se tornou distrito da vizinha Parambu e hoje abriga menos de dez pessoas.


À maneira do monumental Romance d’A Pedra do Reino, em que Ariano Suassuna reconta o sangrento episódio da Pedra do Reino na perspectiva dos épicos de cavalaria, Aranha movediça se serve do fantástico para confrontar o poder de uma família que, de qualquer outra forma mundana, jamais seria derrotada. Assim, o romance se filia a uma vigorosa corrente literária da atualidade, que recorre ao insólito para questionar ou se opor a estruturas hegemônicas. São muitos os exemplos nesse sentido, mas aqui destacamos os romances Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez, Cupim, de Layla Martínez, O céu da selva, de Elaine Vilar Madruga e Come terra, de Dolores Reyes. No caso de Fio, a investida no sobrenatural ainda ajuda a elucidar os mistérios que se impõem, em especial depois de uma visita feita por Jota do Lixo à cidade, nos anos 80.


Aranha movediça, porém, também acompanha um sintoma contemporâneo do que entendo por “rarefação lúdica”. Explico: desde os primórdios, ficcionistas recorrem a diferentes linhas narrativas que, cada uma à sua maneira, procura contribuir para o avanço do enredo, cuja completude se realiza em nós, os leitores e as leitoras. Somos nós os responsáveis por atar as pontas umas às outras, por completar as lacunas que necessariamente separam uma perspectiva da outra. Romances epistolares como As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, já estabeleciam protótipos dessa estrutura no século 18. William Faulkner, especialmente em O som e a fúria, de 1929, recorre a três vozes diferentes — uma delas a de um portador de deficiência mental — para narrar a queda de uma família aristocrática no sul dos EUA.


Nos tempos atuais, é notável a multiplicação de romances polifônicos, de diferentes vozes e linhas narrativas. Muitas vezes, no entanto, a escolha soa como capricho formal, pouco mais do que um exercício estético. Não há importantes acréscimos ao enredo, em si — na verdade, a profusão de pontos de vista torna esse enredo insubstancial, difuso, rarefeito. E nós, que o lemos, nos dedicamos à tarefa lúdica de encontrar sentidos onde por vezes nem o autor ou a autora o enxergou. Lúdica e com frequência frustrante.


Não é exatamente o caso de Moacir Fio. Embora haja, sim, um excesso nas linhas narrativas em Aranha movediça, com expectativas criadas e não exatamente cumpridas; e embora por vezes nós tropecemos nesta teia quando queríamos apenas ser envolvidos por ela, o brilho de seu autor equilibra o saldo final. É uma estreia promissora, que coloca Cococi no mapa de lugares assombrados do país — e Fio no rol de talentos de nossa literatura, insólita ou não.

 
 
 

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