Uma Shirley Jackson inesperadamente divertida em "O ninho do pássaro"
- Oscar Nestarez

- há 2 dias
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A morte da escritora americana Shirley Jackson completa 60 anos em agosto de 2025. Para marcar a efeméride, a editora Alfaguara acaba de lançar o romance O ninho do pássaro, até então inédito no Brasil. Publicado pela primeira vez em 1954, este livro foi, com o tempo, eclipsado por outros títulos da autora, como A assombração da Casa da Colina, O homem da forca e Sempre vivemos no castelo — três romances que, em conjunto com alguns de seus contos, transformaram Jackson em referência para o que se convencionou chamar de horror psicológico.
De Stephen King a Mariana Enriquez, praticamente todos os grandes nomes do gênero reconhecem o talento da autora para compor perturbações a partir dos conflitos internos de suas personagens. Que são quase sempre mulheres jovens, quando não meninas, portanto mais sujeitas e sensíveis às pressões ocultas nos chamados anos dourados da década de 1950 nos EUA, quando se fixou o american way of life.
Enquanto tudo ao redor brilhava e prosperava, enquanto a classe média ia às compras como nunca antes, do lado de dentro das protagonistas de Jackson as coisas iam mal. Elas são, via de regra, figuras alienadas, apartadas daquela normalidade artificial. Seus ricos e complexos universos interiores conflitam com o pragmatismo e o otimismo da época. Por isso as heroínas de Jackson são solitárias e buscam seu lugar em um mundo no qual não conseguem se encaixar, em um movimento que as coloca em situações perigosas — como Eleanor Vance, a jovem de dons mediúnicos de A assombração da Casa da Colina, que resolve passar um tempo numa casa supostamente assombrada para se enturmar; como Natalie Waite, a universitária imaginativa de O homem da forca, que, para escapar do pai tirânico e da mãe omissa, refugia-se em um mundo de fantasia sombria, também cheio de riscos; ou, em situações mais extremas, como Merricat e Constance Blackwood, as irmãs de Sempre vivemos no castelo, que moram em um casarão isolado e se veem acuadas por tragédias de todo tipo.
Também é o caso de Elizabeth Richmond, a protagonista de O ninho do pássaro. O livro vem apresentado como exemplo da plenitude da “rainha do terror”; e de fato, o enredo nos convida a ter essa impressão. Como outras criações de Jackson, Elizabeth é uma jovem tímida, introspectiva, que sofre de dores de cabeça terríveis e ataques de amnésia, durante os quais se transforma em algo muito diferente do que é. Mas só sabemos disso pelas reações de sua tia Morgen, com quem vive. Elizabeth é, então, encaminhada para um psiquiatra, dr. Victor Wright, que por meio de hipnose descobre existirem, dentro da jovem, quatro personalidades diferentes entre si, vivendo em constante conflito. No âmago dessa fragmentação está um evento decisivo, a morte da mãe de Elizabeth, cercada de mistérios.
A síndrome de personalidades múltiplas (ou, no nome técnico, transtorno dissociativo de identidade) já rendeu ficção inquietante. A mais famosa talvez seja o filme Fragmentado (2016), escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, no qual o protagonista interpretado por James McAvoy tem dentro de si 23 personalidades, sendo uma delas bem perigosa. Por vezes o clássico O médico e o monstro (1886), de R.L. Stevenson, também é lido à luz do TDI. Mas aqui vamos evitar qualquer diagnóstico de personagens, qualquer patologização da ficção; basta dizer que é extensa a tradição de obras literárias a explorarem as contradições e as fraturas do ser humano por veredas sinistras — uma cronologia que remonta aos personagens ambivalentes de Edgar Allan Poe, e também à figuração dos duplos.
De início, O ninho do pássaro arrisca seguir pelo mesmo caminho sombrio. As primeiras transformações de Elizabeth são perturbadoras, e o dr. Wright chega a suspeitar de possessão demoníaca: “O que vi naquela tarde foi o apavorante rosto sorridente de um diabo, e, ai de mim, já o vi milhares de vezes desde então”, afirma o médico, na tradução de Débora Landsberg. Mas ele logo descarta a possibilidade e entende o que se passa com a jovem: uma fratura de sua “personalidade integrada” em consequência de algum trauma, o que resulta em outras personalidades divergentes e antagonistas entre si. À medida que segue com as sessões de hipnose, dr. Wright se depara com três manifestações, as quais nomeia, para nosso sofrimento, como Beth, Betsy e Bess. Cada uma delas tem características bem diferentes.
Temos, a partir daí, um ambicioso jogo de espelhos, que demanda arrojos formais de Jackson. O romance é narrado de três pontos de vista diferentes: Elizabeth e tia Morgen, ambas na terceira pessoa; e o dr. Wright, na primeira, em um diário no qual ele registra o tratamento de sua paciente. Nos três casos, as diferentes personalidades de Elizabeth se sucedem, assumindo o controle de sua vida e de seu corpo — o que, na dimensão literária, significa tomar a palavra. Assim sendo, é por meio das transformações no rosto da protagonista e de suas escolhas vocabulares que seus interlocutores percebem estar diante de Beth (amorosa e compreensiva), Betsy (provocadora e infantil), Bess (egoísta e materialista) ou da própria Elizabeth (acanhada). As quatro se acusam e se sabotam sem parar, o que ocorre por meio de cenas complexas e inevitavelmente confusas.
Um exemplo: durante as sessões de hipnose, o dr. Wright descobre que, ao entregar um lápis e um papel para sua paciente, pode conversar com duas das personalidades ao mesmo tempo. Enquanto fala com uma, outra rabisca no papel, geralmente contradizendo aquela que detém a palavra e a acusando de algo. É uma estrutura labiríntica, que Jackson desenvolve em formato semelhante ao da dramaturgia, com diálogos breves e indicações de quem se pronuncia entre parênteses. E isso requer nossa atenção total — também será compreensível se esse procedimento afastar alguns leitores da obra, pois é fácil nos perdermos pelas sinuosidades do texto.
Quem, no entanto, quebrar essa rebentação e seguir adiante vai se deparar com um livro surpreendentemente divertido. Há algo de bufônico na tia Morgen, uma solteirona maliciosa e extravagante que, à sua maneira, faz de tudo para salvar a sobrinha de si mesma; e o dr. Wright é caprichoso e cínico o suficiente para que seu relato seja marcado por tiradas inesperadas. Mesmo quando se vê perturbado pelas transformações da paciente, o psicólogo trata disso com a leveza e a ironia de quem já viu e viveu de tudo (tem por volta de 60 anos), o que impede a história de recair em atmosferas mais tensas, apropriadas ao horror.
Mas são Elizabeth e suas “irmãs” as principais agentes do riso em O ninho do pássaro. Elas são, cada uma à sua maneira, arquétipos exagerados e distorcidos de perfis de feminilidade da época: a recatada, a voluntariosa, a dócil e a egocêntrica. As sabotagens de umas contra as outras beiram o hilário — com frequência Betsy assume o controle, sai caminhando por quilômetros e então cede lugar a Elizabeth, que se vê desorientada, sem saber como voltar. Há também os ataques físicos a si mesma, a mão de Bess esganando o pescoço de Betsy ou Beth, ou arranhando-lhes os olhos, em cenas que remetem a um clássico do terrir, Uma noite alucinante 2, quando a mão do herói Ash é possuída por um demônio e tenta matá-lo. Claro, temos as passagens tensas, quando vislumbramos que há algo mal explicado na morte da mãe de Elizabeth: Bess, a mais repulsiva das personalidades, parece presa em uma moldura de tempo na qual a mãe não morreu. Parece saber de algo que as outras não sabem, e a revelação poderá trazer a tão desejada reintegração da pobre Elizabeth.
Assim, além de uma obra que satiriza os perfis femininos considerados “apropriados” para a época, O ninho do pássaro contém, no núcleo de sua estonteante arquitetura, um enigma. Com sua resolução (que de modo algum entregaremos aqui), Elizabeth e suas irmãs enfim encontram seu lugar no mundo — um lugar mais ameno e ensolarado do que o destinado a outras protagonistas da autora. Afastando-se das perturbações que a consagraram, Shirley Jackson se mostra hábil ao explorar outro efeito estético, vizinho ao horror, neste romance que a reafirma também como um enigma que nunca nos cansaremos de desvendar.





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