
Que ano movimentado foi este. Pareceu durar uma década, de tantos acontecimentos que o preencheram. Em um contexto geral, tivemos a transição do confinamento pela pandemia de Covid-19 para uma espécie de normalidade, a retomada de eventos presenciais, uma campanha eleitoral tensa, que dividiu o país, e agora acompanhamos a Copa do Mundo… bem, melhor deixar para lá.
Da parte deste colunista, o ano também foi intenso e, no geral, muito positivo. Defendi minha tese de doutorado, me casei, lancei O breu povoado (Avec), Tênebra - Narrativas brasileiras de horror [1839-1899] (em parceria com o Júlio França, pela Fósforo) e a antologia Mundos paralelos: Horror, para o público juvenil (Globo). Em meio a esse turbilhão, ainda deu para ler bons livros. É fato que não foi um grande ano em termos de lançamentos de horror – não tivemos, por exemplo, uma novidade do porte de Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez. Mesmo assim, me impressionaram alguns obras de anos anteriores que só pude ler agora. Vamos a elas: 1. Songs of a dead dreamer and Grimscribe, Thomas Ligotti (Penguin Classics) Uma das perguntas mais frequentes feitas por quem ama literatura de horror é: por que Thomas Ligotti ainda não foi publicado no Brasil? Com uma veia profundamente pessimista, o autor norte-americano é considerado um renovador do horror cósmico tornado famoso por Lovecraft. Nascido em 1969 e recluso desde sempre, Ligotti também é celebrado por ficcionistas do porte de Ramsey Campbell, Jeff Vandermeer e Mariana Enriquez.
Songs of a dead dreamer and Grimscribe justifica a fama. Publicado pela Penguin Classics, o livro reúne as duas principais coletâneas de contos publicadas por Thomas Ligotti: Songs…, de 1985, e Grimscribe, de 1991.
É uma obra volumosa, da qual destaco três narrativas: "The last feast of the harlequin", talvez o conto mais famoso de Ligotti e uma verdadeira boneca russa de horrores; "The frolic", cuja condução da tensão rumo a um desfecho pavoroso é difícil de esquecer; e "The chymist", um arrojado experimento no formato da narração, pois a história é relatada por meio do monólogo do protagonista com uma prostituta, e cuja trama – pessoas transformadas/aprisionadas em sonhos – é aterrorizante. 2. Crash, J.G. Ballard (Cia. das Letras) Grande romance publicado pelo britânico James Graham Ballard em 1973 e adaptado por David Cronenberg em 1996. Não bastasse o enredo singular – a turma que tem fetiche por acidentes de carro –, a narração é toda voltada para dentro, quase monótona, o que vai amplificando a nossa estranheza ao longo da leitura. A estrutura também impressiona: pouquíssimas narrativas podem se dar ao luxo de começar e terminar com exatamente a mesma cena, como esta faz tão bem. O destaque maior, contudo, vai para os personagens. Aqui, esperamos que alguém se escandalize, se revolte com o que ocorre, mas não: todos, do narrador protagonista (homônimo de Ballard) aos personagens secundários, estão neste transe do tesão catastrófico.
Todos orbitam um núcleo poderoso, Vaughan, que jamais é revelado por completo. Ele mal tem voz, só existe por palavras de outros, mas espreita e assombra sem parar. É a técnica narrativa utilizada por Joseph Conrad na composição de Kurtz, de O coração das trevas, e por Cormac McCarthy na do juiz Holden, de Meridiano de Sangue. Não à toa, personagens tão assustadores quanto inesquecíveis. 3. Gótico nordestino, Cristhiano Aguiar (Alfaguara) Lançada no começo de 2022, a coletânea do paraibano Cristhiano Aguiar não chega a ser exatamente uma obra de horror. Mas os nove contos aqui reunidos propõem um diálogo tão inspirado com as narrativas arrepiantes, que se tornaram uma de minhas leituras favoritas do ano.
As referências remetem a famosos tópicos do horror – ora aludindo ao universo lovecraftiano, como em A mulher dos pés molhados, ora nos apresentando zumbis às avessas, como no caso de Lázaro, em que vítimas fatais de Covid-19 ressuscitam, ora utilizando o vampirismo para representar o rito de passagem de uma jovem da zona da mata paraibana, como no conto "Vampiro" (meu preferido).
Além disso, Aguiar utiliza procedimentos do horror como veículos para destinos diversos, a exemplo do drama íntimo de personagens (caso de “Anna e seus insetos”) ou a tragédia coletiva ("As onças").
O texto é permeado por epifanias – uma das marcas do modernismo literário –, o que amortece o impacto do horror, por “desviar” a atenção de quem lê para a escritura, em oposição à narração. A despeito disso, a prosa é, em si, um deleite, e no livro há imagens que permanecem conosco por um bom tempo após o fecharmos. 4. Estação das moscas, Cirilo S. Lemos (Draco) Em 2021, a editora Draco anunciou um projeto e tanto: a coleção Dragão Negro, com seis livros de horror escritos por ficcionistas contemporâneos brasileiros. O último volume publicado foi Estação das moscas, do carioca Cirilo S. Lemos, que, com o perdão pelo clichê, fechou a coleção com chave de ouro.
Trata-se de um romance de formação protagonizado pelo garoto Jonadabe, ou Jona, morador de uma comunidade em Nova Iguaçu (RJ) nos anos 1980. Ele se vê cercado por problemas – brigas entre os pais, desentendimento com amigos, amores frustrados – , e não demora para que essa conjuntura opressiva se materialize em uma criatura sobrenatural, o Cara de Mosca.
Lemos constrói um universo fascinante. A contextualização do tempo e dos espaços é apuradíssima, o humor é bem dosado e nossa conexão com Jona e sua história é imediata. O autor também costura referências improváveis com inteligência e humor, e o que resulta disso é uma mistura de Stranger things, desenhos dos anos 1980 e filmes mais pesados de horror, como A mosca ou Alien. 5. Horrorstör, Grady Hendrix (Quirk Books) O último livro de nossa breve lista tampouco tem edição aqui no Brasil. É o romance Horrorstör, publicado em 2014 pelo norte-americano Grady Hendrix e ilustrado pelo também norte-americano Michael Rogalski. Hendrix ficou conhecido por aqui como autor de O exorcismo da minha melhor amiga, romance que combina horror e humor de maneira inteligente.
Horrorstör vai pelo mesmo caminho. Aqui, temos a história não de uma casa, mas de uma loja de departamento assombrada. E para aprofundar a experiência de leitura, o projeto gráfico do livro simula um catálogo de móveis de redes escandinavas como Ikea – ou Orsk, como é chamada a loja do romance.
Outro destaque é a forma como a narrativa muda de tonalidade quando o sobrenatural passa a se manifestar – o humor e as sacadinhas que predominam na primeira parte dão lugar a uma atmosfera sinistra bem construída e a cenas de fato terríveis.
Em tempo: em janeiro, a coluna estará de férias. Então, até fevereiro, e um feliz ano novo!
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