No começo dos anos 90, os cineastas Quentin Tarantino e Roger Avary começaram a escrever um roteiro a quatro mãos — uma experiência que o primeiro reproduziria anos mais tarde ao lado de Robert Rodriguez em Grindhouse. Cada um cuidaria de uma parte da história, que resultaria em duas narrativas diferentes, mas esteticamente aproximadas. O projeto, que teve o título provisório de Black Mask, foi adiante: o roteiro de Tarantino transformou-se em Cães de Aluguel, enquanto que o de Avary serviu de base para Pulp Fiction.
São filmes que, hoje, todo mundo conhece. Mas o que muita gente talvez não saiba é que Black Mask rendia homenagem a uma espécie de periódico que fazia tremendo sucesso na primeira metade do século XX: as revistas pulp, ou “de polpa”. Tinham esse nome pela matéria-prima com que eram feitas — polpa de madeira mais barata. E deram origem a um certo tipo de ficção selvagem, imaginativa e, claro, considerada “inapropriada” pelas potestades da crítica literária de então: a ficção pulp.
O próprio título Pulp Fiction é prova disso; assim como Black Mask, cujo nome foi emprestado da mais famosa pulp magazine dedicada a histórias de detetive e mistério, fundada pelo jornalista estadunidense H.L. Mencken (hoje mais conhecido por ser autor de O Livro dos Insultos).
No entanto, como aqui nos interessam mais os mistérios que nem detetivaços como Sam Spade (de O Falcão Maltês, um dos clássicos da revista de Mencken criado por Dashiel Hammett) conseguiriam resolver, deixaremos a Black Mask de lado. Vamos em busca de um verdadeiro baú de esquisitices, um repositório de desvarios e pesadelos que ficou conhecido por ter revelado ninguém menos do que H.P. Lovecraft e outros grandes nomes do “horror cósmico”: a revista pulp Weird Tales.
Era uma vez, em 1923…
Foi em março daquele ano que o editor Jacob Clark Hennenberger publicou o primeiro volume da revista, em Chicago (EUA). A tiragem era mensal, e a ideia era pegar a esteira de outras publicações semelhantes, como a própria Black Mask (fundada em 1920). Mas, que fique claro (ainda que isto cause mortificação nos mais românticos): a Weird Tales não foi fruto de uma motivação altruísta de incentivar a produção literária de estranhezas. A ideia era fazer dinheiro — e muito — com a publicação de escritores de renome.
Tanto que, quando percebeu que isso não estava ocorrendo, Hennenberger rapidamente afastou-se da edição de sua criatura, mantendo-se como o proprietário. Com efeito, a publicação jamais chegou a fazer muito dinheiro. E, em vários momentos — sobretudo na Depressão de 1929 —, quase foi à bancarrota.
Mas, de alguma forma, a revista seguiu adiante. Manteve-se firme ao longo de 31 anos e por impressionantes 279 volumes. Uma marca que, de acordo com o pesquisador S.T. Joshi em A Dreamer and a Visionary: H.P. Lovecraft in his Time, jamais foi batida por outra revista pulp.
E, com o passar do tempo, a mística só aumentou: tão vasto tornou-se o impacto da Weird Tales, que a produção literária associada à revista foi até batizada "academicamente" de weird fiction (ao menos nos EUA).
Qual era a magia, então?
Talvez a resposta esteja na abertura que a revista ofereceu para escritores iniciantes. De saída, Jacob Hennenberger nomeou Edwin Baird como editor, com Farnsworth Wright e Otis Kline como seus assistentes.
Como Baird não tinha tanta sensibilidade para a weird fiction, aceitava praticamente tudo o que recebia. E, ainda que as primeiras edições constituíssem um verdadeiro balaio de gato, com histórias extravagantes e um tanto amadoras, a Weird Tales foi, aos poucos, ocupando vazios em corações negros e solitários por todo o país.
O próprio Lovecraft leu esses primeiros volumes, ficando positivamente impressionado com alguns contos. Como, naquele momento, estava batalhando para ser profissionalmente publicado, o autor resolveu enviar a Baird e seus asseclas algumas histórias. Não foi a primeira vez, é verdade; havia submetido os contos Dagon e A Tumba à Black Mask, recebendo dois enfáticos “nãos” como resposta.
Dois centavos por palavra
Vislumbrando espaço para sua obra na revista recém-criada, Lovecraft enviou logo cinco contos de uma vez: Dagon, Arthur Jermyn, Os Gatos de Ulthar, O Cão de Caça e O Depoimento de Randolph Carter. Mandou ver, também, em uma carta lamentando a recusa de “Dagon” por parte da publicação rival.
Após algumas idas e vindas, Dagon foi finalmente aceito — assim como os outros quatro relatos. Mas o curioso é que o primeiro texto de Lovecraft publicado na revista não foi uma ficção, mas sim a carta lacrimosa.
Sempre de acordo com Joshi, H.P. Lovecraft rapidamente tornou-se colaborador assíduo da Weird Tales, aparecendo em cinco de seis edições entre outubro de 1923 a abril de 1924. E os pagamentos, ainda que magros, forneceram alívio ao financeiramente desorganizado autor. A julgar pelas evidências, Lovecraft recebeu mais do que um centavo por palavra, que era a práxis das revistas pulp de então. Pelos aproximadamente 2.500 vocábulos de Dagon, ele recebeu US$55, o que dá mais de dois centavos por cada termo.
Guinada para o horror
No entanto, foi só no final de 1924 que a revista “decolou” de fato, com o afastamento de Edwin Baird e com Farnsworth Wright assumindo as carrapetas. Nas mãos de Wright, a Weird Tales finalmente fez jus ao nome.
O novo editor não apenas apenas continuou a publicar textos de Lovecraft, mas adquiriu histórias daqueles que a revista ajudou a estabelecer como grandes nomes da estética do “horror cósmico”, como Robert E. Howard (criador de Conan, Kull e Solomon Kane), Robert Bloch (que futuramente escreveria Psicose) e Frank Belknap Long (autor de várias histórias lovecraftianas), entre outros. Para que se tenha uma ideia, esses três foram alguns dos autores que “estrearam” na publicação.
Além disso, gigantes do passado também ressurgiram na revista. A Weird Tales reeditou obras de Edgar Allan Poe, Mary Shelley, Nathanael Hawthorne, Bram Stoker, H.G. Wells, Oscar Wilde, William Blake e Charles Baudelaire, para ficarmos em apenas alguns. Outro destaque eram as capas, que traziam as inspiradas ilustrações da artista Margaret Brundage.
Em 1938, Hennenberger vendeu a Weird Tales para William J. Delaney, que já publicava outra pulp de sucesso, Short Stories. Após sofrer duras restrições financeiras, a revista foi transferida para Nova York. E Farnsworth Wright, que estava seriamente doente, cedeu lugar a Dorothy McIlwraith, em 1940.
De acordo com o The Pulp Magazines Project, foi o começo do final. Em janeiro 1940, a publicação deixou de ser mensal para tornar-se bimestral. E, ainda que mantivesse a tradição de publicar jovens autores de talento, como eram então Ray Bradbury e Fritz Leiber, a Weird Tales continuava agonizando financeiramente. Até que, em setembro de 1954, saiu o derradeiro volume.
Revista zumbi
No entanto, como tantas entidades abrigadas em suas páginas, a Weird Tales não morreu facilmente. Foi ressuscitada em 1973-74, depois em 1984-85, e mais uma vez em 1988, como periodicidade trimestral. Em 2007, veio outra nova “investida” — inclusive com a conquista de um Hugo Award, o mais importante prêmio do gênero de ficção científica (cujo nome presta homenagem a Hugo Gernsback, fundador de outra revista pulp clássica, a Amazing Stories).
Hoje, o culto segue vivo e muito bem, obrigado. A fan page da Weird Tales no Facebook conta com mais de um milhão e meio de likes, há diversas publicações digitais inspiradas por ela e obras de weird fiction continuam surgindo pelos quatro cantos do mundo. Sem contar grandes os nomes da atualidade, que, como Tarantino e tantos outros, vira-e-mexe mandam um “salve” para este momento tão importante e inventivo da ficção no século 20.
Neste link, você pode baixar algumas edições em inglês.
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