top of page
Buscar

A natureza como uma mãe vingativa: entrevista com a escritora Elaine Vilar Madruga

  • Foto do escritor: Oscar Nestarez
    Oscar Nestarez
  • 16 de abr.
  • 5 min de leitura

Em 'O céu da selva', da escritora cubana Elaine Vilar Madruga, natureza age como uma deusa impiedosa que devora seus filhos — Foto: Divulgação/Redes sociais
Em 'O céu da selva', da escritora cubana Elaine Vilar Madruga, natureza age como uma deusa impiedosa que devora seus filhos — Foto: Divulgação/Redes sociais

A humanidade se acostumou a pensar na natureza como um supermercado. A partir da revolução industrial, a nossa exploração dos recursos naturais do planeta foi atingindo escalas cada vez maiores, como se esses recursos fossem inesgotáveis. A ideia de progresso nos séculos 19 e 20 era exatamente antagônica à ideia de preservação ambiental: avançar significava construir, intervir, extrair, modificar os espaços selvagens. A natureza era vista como mãe, de fato: existia para nos alimentar, acolher, apaziguar.


Com essa mentalidade, ultrapassamos um bocado os limites. E, hoje, a história é bem diferente. Já no começo do século 21, o mundo começou a sentir os efeitos das mudanças climáticas — que logo se transformaram em uma declarada emergência. Difundiram-se termos como antropoceno, isto é, a época em que os efeitos da ação humana no planeta já são reconhecidos como capazes de produzir impacto geológico. Os aumentos do nível do mar e da temperatura terrestre são alguns dos indícios disso; sinais de que, desde a revolução industrial, a ação humana alterou o planeta de maneiras profundas.


E a literatura vem incorporando essa mudança de diferentes formas, todas mapeadas pela ecocrítica — o campo de estudos das relações culturais e artísticas entre seres humanos e o mundo não humano, isto é, animais, plantas, minerais, climas, ecossistemas. Na ecocrítica, predomina a ideia (a caminho de se tornar uma certeza) de que fomos longe demais, de que já é tarde demais. E de que é questão de tempo para a natureza dar o troco.


Tal perspectiva, bastante assustadora, vem sendo mimetizada por ficcionistas no que se convencionou chamar de eco-horror, do qual tratei nesta coluna. E um dos exemplos mais interessantes do que já se pode considerar um subgênero do horror é o romance O céu da selva, da cubana Elaine Vilar Madruga, publicado no Brasil pela editora Instante.


A princípio, a ideia de Madruga é tão simples quanto brutal: chegou a hora de a natureza nos consumir. Nos comer, de fato. Pior ainda, de comer a carne tenra das crianças, já que a ela não agrada a carne envelhecida e endurecida dos adultos. Assim, devoradora, é a selva vizinha à fazenda onde se passa a história. Nela vive uma família bastante disfuncional composta pela “velha”, suas filhas Santa e Ananda, e as “crias”, crianças paridas por Santa cuja única função é alimentar a selva. Em troca, o matagal oferece animais, frutas e outros víveres. Mas nada de abundância: apenas o mínimo para manter as personagens vivas, sempre à beira da inanição. Há ainda um personagem secundário, Lázaro, companheiro de Santa, pai de algumas crias e responsável por matá-las para que sejam devoradas.


Este pequeno universo ficcional nos é apresentado no formato polifônico, isto é, cada capítulo traz o ponto de vista de uma personagem. A voz narrativa também se desloca: ora temos a primeira pessoa, no caso da velha e de Santa, ora a segunda, no caso de Ananda (que se desumanizou e transformou em uma cachorra), ora a primeira do plural, no caso das crianças, de narração “coletiva”. Desse jogral emerge um ambiente áspero, no qual reina a animosidade entre as personagens, sempre ameaçadas pela manifestação aterradora da selva, que se torna vermelha para indicar sua vontade de comer.


Em conversa com a coluna, Elaine Vilar Madruga conta ter partido da clássica pergunta “e se?”, central para histórias fantásticas e de horror. “O que aconteceria se a selva contra-atacasse? Se ela devolvesse aos seres humanos o dano que causamos de forma milenar?” Essa indagação permitiu à autora explorar um amplo espectro do horror.


A começar pela sensação de catástrofe iminente, presente desde o primeiro parágrafo de O céu da selva. Todas as personagens parecem se odiar, e mesmo o amor de Santa por Lázaro é demonstrado de maneira violenta, reativa. A atmosfera é densa, hostil, e quando se apresenta o motivo central da narrativa — a selva devoradora de crianças —, nossa expectativa é definitivamente capturada; aguardamos o primeiro banquete, que se dá em uma cena poderosa, repleta de sangue. Nesse sentido, os capítulos centrados nas crianças se destacam, pois exploram o pavor inocente do grupo. Elas se perguntam o motivo de serem sacrificadas, mas ele não existe. Conforme reitera a velha, “é assim que as coisas são e devem continuar sendo”.


A selva figura, desta forma, como uma divindade com desejos e vaidades. “E como todas as divindades, em todos os panteões universais, a selva é caprichosa, teimosa, ambivalente”, conta Vilar Madruga. “É uma entidade cuja bússola muda a todo momento; ora permite que crianças entrem tranquilamente em seu ventre, ora os devora”. Mas o segundo caso ocorre com frequência maior, pois estamos no território do horror.


O céu da selva é, também, um livro sobre mulheres que dizem “chega”. Na esteira de obras de horror feminista, como Cupim, da espanhola Layla Martínez, ou alguns títulos da equatoriana María Fernanda Ampuero, o romance de Vilar Madruga adota uma postura contra-hegemônica no que se refere a gênero. Em certo ponto, Santa se recusa a continuar parindo o alimento da selva, assim confrontando a velha, sua mãe, que luta pela permanência do status, pela sobrevivência do grupo. Santa escolhe sua autonomia e suas vontades em detrimento da dedicação à família. Escolhe, por assim dizer, retomar a posse de seu corpo. Espelha-se aí um conflito geracional entre mulheres dentro do contexto patriarcal, traço bastante contemporâneo.


Para Vilar Madruga, a liberdade e o manejo de simbologias inerentes ao horror permitem ir mais fundo nessas questões. “A postura [contra-hegemônica] já estava presente na literatura latino-americana e caribenha, sobretudo nas obras das gerações mais recentes de escritoras, que a abordam a partir de uma ideia de corpo, de identidade e de vivência. Mas sinto que o fantástico, o horror sobrenatural, possibilita darmos uma outra volta no parafuso”, explica, parafraseando a obra de Henry James. “Pois com isso temos uma camada simbólica, uma dupla camada que nos permite falar da realidade a partir de uma imagem clara, mas também transmitir mensagens subjacentes. E gosto muito disso, pois me permite dialogar com leitoras e leitores em outro plano.”


A autora também exalta o horror pela possibilidade de se exumar vivências que durante muito tempo foram silenciadas. “O gênero pode dar uma dimensão diferente para as histórias vividas por nossas avós e bisavós, histórias sofridas e aterradoras.” O próprio O céu da selva é dedicado às bisavós de Vilar Madruga, mulheres “que pariram demais”. Como milhões de outras, Madruga conta que ambas tiveram dez filhos, sendo condenadas à maternidade como único caminho possível. Seriam redimidas pela figura de Santa, que, além de se recusar a parir, considera devorar algum de seus filhos.


Assim, no romance da autora cubana a maternidade assume um caráter duplamente negativo: a “mãe” natureza que se vinga e as mulheres que se voltam contra as próprias crias. Codificada pela violência e pelo grotesco, a história não só incorpora o medo contemporâneo de que talvez já tenhamos ido longe demais, como problematiza o que costumamos chamar de maternidade monstruosa. Por essas qualidades, O céu da selva reafirma a vocação do horror para narrar mais a fundo a vida nos perturbadores tempos atuais.

 
 
 

Comments


©2019 por Terra Treva. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page