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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Viva, Poe!*


Capa da coletânea Delirium Tremens (Draco Editora)

Olhar provocador, cabelos desalinhados, lábios cinicamente desenhados: antes mesmo dos textos de Edgar Allan Poe, seu retrato já causa estranhamento. É impossível não nos inquietarmos diante da expressão ora enigmática, ora melancólica, mas sempre desafiadora do autor estadunidense.


Isto acontece porque o retrato de Poe é também o de sua vida. Sua breve e tumultuada vida, que começa em janeiro de 1809, em Boston, e se encerra misteriosamente em outubro de 1849, em Baltimore. O retrato de um rosto esculpido pela genialidade, mas também vincado pelo desequilíbrio, pelo álcool e por uma incontrolável tendência à autodestruição.


É conhecida a sua trajetória rumo à ruína. Alguns biógrafos atribuem-na ao contato precoce com a morte -- antes de completar três anos, Poe perde a mãe, Elizabeth Arnold. O pai, David Poe, desaparece sem dar notícias. Mas devemos considerar também o temperamento combativo do autor, que sempre lhe custou caro: primeiro, a ruptura com o pai adotivo (o que o impediu de herdar uma fortuna); depois, o “convite para se retirar” da Universidade de Charlottesville; por fim, os confrontos com chefes, que resultaram em seguidas demissões.


Em meio ao caos exterior e interior, no entanto, Poe conseguiu atingir o sublime. Desde 1827, quando publica seu primeiro livro -- Tamerlão e Outros Poemas -- até praticamente o final da vida, ele jamais deixou de escrever. Contra tudo (e muitas vezes contra todos), legou-nos uma obra que dividiu as águas da literatura -- as escuras das claras. Entre outras façanhas, atribui-se a ele a criação do conto moderno de horror e da narrativa policial.


Hoje, a sombra de Poe alcança muito além dos livros. Trata-se de uma influência cuja origem é complexa -- um território em que biografia e obra se confundem para aproximar o homem do mito. Seja como for, 210 anos após seu nascimento, nós o encontramos por todos os lados: ele está entre os escritores mais adaptados da história do cinema, roteiristas vivem recorrendo à sua ficção para criar séries, seus contos e poemas são frequentemente levados aos palcos do teatro, game designers têm transformado suas histórias em jogos, e por aí vai.


Os quadrinhos, claro, também estão sob essa sombra. Mas são poucas as publicações que, a exemplo deste Delirium Tremens, optaram pelo caminho de uma inspiração livre no universo poeano, sem as amarras da adaptação. O que mais encontramos por aí são versões das narrativas literárias para as HQs.


Não é o caso desta publicação, felizmente. Para celebrar os dois séculos e uma década que nos separam do nascimento de Poe, o organizador Raphael Fernandes conseguiu reunir este grupo de quadrinistas em torno da seguinte premissa: a partir de algum aspecto marcante do universo do autor, criar, pura e simplesmente.


Como resultado dessa provocação, temos um notável conjunto de novas histórias. Algumas acenam sutilmente para os elementos ficcionais/biográficos de Poe. É o caso de “In articulo mortis”, narrativa criada a partir do interesse do autor pelas novidades de sua éṕoca -- notadamente, a hipnose, que o encantou e o levou a escrever “Os fatos no caso do sr. Valdemar”. É o caso, também, de “Butim”, que explora o maior medo de Poe: ser enterrado vivo; e de “Murder”, que envolve a mística de “O corvo” com as brumas da ficção científica e da conspiração.


Já outras narrativas abraçam visceralmente esses elementos. Passam noites intensas, sórdidas e sangrentas com eles. Pertencem a esse grupo “Smile Away”, que leva a monomania expressa em “Berenice” para além das últimas consequências; “Fortuna tóxica”, que traz a magnífica vingança de “O barril de amontillado” para os tempos atuais, impregnados de corrupção política e humana; “O insólito caso de vossa excelência deputado Mendes”, que segue o mesmo caminho, mas pela via do grotesco e tendo novamente “O corvo” como esteio. Por fim, “A queda do gene de Usher” caminha lado a lado com um dos mais belos contos de Poe -- até trilhar seu próprio rumo em direção aos horrores da manipulação genética.


Aludindo ao alcoolismo de que Poe era vítima, Delirium Tremens surge, assim, como uma verdadeira procissão de pesadelos e alucinações. Mas a publicação é, antes de tudo, uma inventiva homenagem ao mestre. Uma celebração a um artista perturbado, que experimentou a morte desde muito cedo, e que passou a vida tentando domá-la, conquistá-la, superá-la. Bem: a julgar por esta e tantas outras reverberações atuais do nome de Poe, podemos dizer que ele conseguiu.


*Texto escrito para a apresentação da coletânea de quadrinhos Delirium Tremens, da Draco Editora. Clique aqui para comprar a HQ!

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