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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Uma breve cronologia da nossa devoção às histórias de horror*


Silent Hill (Konami / Divulgação)

Das origens literárias aos games: como a ficção de horror se adapta aos novos tempos


Fãs de horror são fiéis, e dos mais devotos. Movidos pela fé naquilo que acadêmicos chamam de “medo estético” – o efeito sentimental “seguro” causado por uma obra de arte do gênero –, costumam ser ecumênicos em sua devoção. Costumam frequentar a literatura, o cinema e os games de horror com o mesmo fervor, sempre buscando novas formas de atingir o êxtase do medo. Em busca dessa experiência transcendental, cultuam livros, filmes e jogos eletrônicos sem distinção.

E assim como qualquer fé tem sua história documentada, queremos organizar, como devotos que também somos, uma breve genealogia dessa devoção. Já fizemos algo parecido com a literatura de horror. Mas agora pretendemos ir além: partiremos do Gênesis literário rumo aos tempos atuais, com os games. No trajeto, porém, seremos obrigados a deixar de lado os evangelhos fundamentais do cinema, por conta de limites de espaço. Mas no futuro essa genealogia também será traçada. 

Para realizar a tarefa, contamos com a inestimável contribuição de Vicente Martin Mastrocola, vulgo Vince Vader. Professor universitário e game designer, Vince é autor de Horror Ludens – Medo, entretenimento e consumo em narrativas de videogames (ed. Livrus), livro que traça uma cronologia analítica sobre os jogos de horror – e que você pode baixar de graça aqui. Um verdadeiro sacerdote no assunto. Vamos em frente, então.


Antiquíssimo testamento: o gótico


A ficção de horror nasce com O Castelo de Otranto, livro publicado 1764 pelo aristocrata inglês Horace Walpole. A obra é considerada a pedra fundamental do movimento gótico, tido por estudiosos como a matriz da literatura fantástica (campo de estudos no qual se insere o horror).

Estamos em pleno iluminismo europeu do século XVIII – ou seja, quando a ciência joga luz naquela que é considerada a “Idade das Trevas”. Neste momento de racionalização, um autor opta por somente assombrar os leitores. Pretende causar medo, e nada mais – diferentemente de obras anteriores, que utilizavam elementos sobrenaturais para propagar a fé (vide a Bíblia) ou para aclamar figuras históricas (romances de cavalaria como as Sagas do Rei Arthur, por exemplo). 

Ambientação medieval, castelos assombrados, calabouços gotejantes, esqueletos que voltam à vida… o livro de Walpole é um verdadeiro inventário dos elementos que, até hoje, são utilizados para se construir uma história de horror. Principalmente em alguns dos games que veremos mais adiante.

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Depois de Walpole, a ficção literária de horror se propaga intensamente e ganha cada vez mais fiéis. O alemão ETA Hoffmann acrescenta a loucura de suas personagens às tramas de obras como O Elixir do Diabo (1816) e O Homem da Areia (1817); A britânica Mary Shelley junta pedaços de cadáveres para compor seu Frankenstein (1818); e muitos outros autores quebram a cabeça para catequizar novos devotos.

Mas é consenso, entre especialistas, que ninguém tenha feito tanto pela ficção de horror como o estadunidense Edgar Allan Poe. Para entender o porquê, basta que se conheça os contos da antologia Tales of the Grotesque and the Arabesque (1840) -- no Brasil conhecida como as Histórias Extraordinárias.


Tem de tudo. A tradição gótica (marcante em relatos como A Queda da Casa de Usher, O Poço e o Pêndulo e Ligéia); as inovações “tecnológicas” da época (como a hipnose em “Os Fatos no Caso do Senhor Valdemar”), a crueldade (O Gato Preto e O Barril de Amontillado mostram o quão tenebrosos podemos ser) e, claro, o sobrenatural (em A Máscara da Morte Rubra e O Coração Delator, por exemplo).


A partir daí, a ficção literária de horror se estabelece de vez, atraindo mais e mais fiéis. Muitos apóstolos vieram depois: Bram Stoker, Howard Phillips Lovecraft, Stephen King, Clive Barker, Neil Gaiman e tantos outros, cada um contribuindo para a propagação da palavra.


E é muito provável que boa parte deles frequente a cabeceira de novos sacerdotes – que tiveram e têm, à sua disposição, os avanços tecnológicos para atualizar essa tradição, para ampliar o alcance do medo: os game designers


Novo testamento: os games de horror

A origem dos videogames remonta à década de 1970. E o advento permite que criadores (e devotos) encontrem novas formas de causar medo, essencialmente interativas.

Nos idos de 1982, o curioso Haunted House já figura no portfólio da Atari. Nada assustador para os parâmetros atuais, o game apresentava uma interface e uma lógica muito simples: dois olhinhos explorando uma mansão em busca de pedaços de uma relíquia secreta, fugindo de morcegos e fantasmas (ecos de O Castelo de Otranto não são mera coincidência).

Daí em diante, assim como aconteceu na literatura, a ficção de horror nos games foi sendo enriquecida por novos títulos – e, principalmente, novas plataformas. Depois do Atari, foi a vez do NES, o famoso Nintendinho, receber visitas macabras. Entre elas, a do famigerado Jason Voorhees, que perseguia suas vítimas no jogo Friday The 13th. Estamos nos anos 90, e são inúmeros exemplos de games de horror que podemos listar dessa época.

Mas é a partir da primeira versão do Playstation que a coisa fica séria para valer. Dali em diante, a experiência de jogar um game de horror passa a ser realmente assustadora. Legiões de novos fãs são atraídos para a causa, convertidos por títulos como o já clássico Silent Hill.

A franquia, aliás, é um divisor de águas. Da mesma forma que grandes autores como Hoffmann e Poe, tornou-se referência para muitos dos jogos que vieram a seguir.  Isto porque utiliza recursos de narrativa cinematográfica, colocando o jogador em terceira pessoa a comandar a personagem principal por um ambiente verdadeiramente aterrorizante, repleto de referências góticas e de criaturas lovecraftianas.

Daí em diante, a experiência só se torna mais intensa. Os gráficos evoluem e chegam próximos à perfeição, os recursos sonoros se enriquecem, as interações ficam mais sofisticadas.

Dessa cepa de novos catequistas, alguns exemplos merecem destaque: Outlast – em que o jogador, contando com apenas com uma câmera de vídeo na mão como arma, precisa fugir de um sanatório repleto de doentes possuídos por uma entidade demoníaca; Silent Hills – que foi cancelado, mas cuja versão demo causou legítimas reações de medo nos jogadores; e Layers of Fear – história soturna sobre um pintor que deve juntar pedaços de um quadro em busca de memórias de um crime.


Novíssimo testamento: realidade virtual

Mas a tecnologia segue nos empurrando para novas e desconhecidas fronteiras do horror. E desta vez, parece que o salto no escuro será muito amplo. Pois alguns jogos já são projetados para experiências imersivas de realidade virtual.

É o caso como o Paranormal Activity. O título, que será lançado para as plataformas Oculus Rift, HTC Vive e o Sony PlayStation VR, promete ser um dos mergulhos mais intensos na do horror lúdico jamais vistos no território dos games. E ainda no campo da realidade virtual, há também o Shark Attack, uma experiência de exploração submarina em meio a tubarões que promete transformar em pandarecos os nervos de quem tem medo do mar.


E é assim, de salto tecnológico em salto tecnológico, que a ficção de horror continuará atraindo devotos. É fato que muitos dos aficionados por games não chega a se interessar pelas origens literárias; mas é sempre bom lembrar que um jogo nasce de um roteiro; portanto, deve ser escrito. E, quanto mais o roteirista conhecer das searas e das referências que pretende explorar, mais atraente será sua evangelização.


*Artigo escrito em colaboração com Vince Vader (Vicente Martin Mastrocola), game designer, pesquisador e autor dos livros Horror Ludens (2014, Livrus), Game Design (Cengage Learning, 2015) e Game Cultura (2016, Cengage Learning)

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