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Foto do escritorOscar Nestarez

Um passeio pela perigosa mente de Clive Barker, criador de 'Hellraiser'

Britânico contribuiu para reformular a estética do horror em diferentes linguagens artísticas


Clive Barker em 2007 (créditos da imagem: Steven Friedrich)

Kristy Cotton está em um quarto de hospital. Nas mãos, tem uma espécie de quebra-cabeça em forma de cubo, que revolve obsessivamente até ativar algum mecanismo oculto. O objeto passa a se mexer por conta própria, até que o ambiente parece responder a esses movimentos: as lâmpadas oscilam e fissuras espalham-se pelas paredes, derramando uma luz doentia sob o rosto assustado de Kristy. As rachaduras abrem-se e por elas surgem três monstruosas criaturas.

Aterrorizada, a moça pergunta quem ou o quê está diante de si. Uma das criaturas toma a dianteira; ela tem o rosto cravejado por pregos e, numa voz subterrânea, afirma: “Somos exploradores das regiões mais distantes da experiência. Somos demônios para alguns, anjos para outros”.


A cena acima está no filme Hellraiser (1987), escrito e dirigido por Clive Barker. E a frase, dita por sua criação mais famosa -- o Hell Priest apelidado de Pinhead --, soa como um resumo das motivações que levaram o próprio Barker a compor algumas das mais potentes obras atuais da ficção de horror.

São histórias que atraem pela carga imaginativa, pela crueza das descrições e pela violência contra o corpo humano. Narradas em curiosa chave poética, encantam e repelem ao mesmo tempo. Histórias que, sem dúvida, colocam os leitores na condição de exploradores de regiões mais distantes, na maioria das vezes desconhecidas e quase sempre apavorantes.

Não falamos apenas da novela The Hellbound Heart, que deu origem ao filme; mas também dos Livros de Sangue, de Cabal, de WeaveWorld (aqui editados como A Raça da Noite e A Trama da Maldade) e de outras obras do período inicial da carreira do autor. Um conjunto de fôlego tal que levou ninguém menos do que Stephen King a afirmar o seguinte: “Eu vi o futuro do horror, e seu nome é Clive Barker”.

Teatro, tragédia e Poe

Embora viva nos EUA há quase trinta anos, Clive Barker é britânico, natural de Liverpool. Nasceu em 1952, filho de um escriturário e de uma pintora e assistente social. Mas, para além das artes plásticas, Joan Ruby, sua mãe, tinha muito talento para contar histórias, o que o marcou profundamente desde os primeiros anos de vida.

De acordo com biógrafos do autor, outros dois fatos o influenciaram durante a infância. Um deles foi a boarding house (uma espécie de pensão) que os pais mantinham para complementar a renda: muitos dos hóspedes eram atores de teatro, e o convívio com eles animou o interesse pelos palcos no pequeno Clive, que futuramente também se tornaria dramaturgo.

O outro fato foi o testemunho de uma tragédia. Quando tinha cerca de três anos, Barker foi com os pais a uma festa na cidade, durante a qual assistiu a um homem saltar de um avião portando asas improvisadas. Tratava-se de Léo Valentin, famoso paraquedista da época. Mas uma das asas quebrou-se e o birdman projetou-se com tudo rumo ao chão. Forçado a olhar para o lado no momento do choque, o menino passou a desenvolver um fascínio por imagens mórbidas, “proibidas”.

Essa atração só fez crescer quando, no início da adolescência, Barker travou contato com a literatura de horror. Contato intenso, por sinal, já que era ávido leitor de Edgar Allan Poe. O conto Novos Assassinatos na Rua Morgue (1985), que está no segundo volume dos Livros de Sangue, dá a medida da influência exercida pelo autor estadunidense.

O teatro como bálsamo e refúgio

Além do fascínio pelas histórias de horror, o interesse pela dramaturgia também crescia. Já no segundo ano do ensino médio, Clive Barker começou a escrever e, com a ajuda de amigos, a encenar as próprias peças.

Durante a faculdade, o que supostamente era um passatempo virou assunto sério. Ao estudar língua inglesa na Universidade de Liverpool, Barker enfrentou uma série de dificuldades sociais -- boa parte delas devido à homossexualidade cada vez mais latente. Assim, a criação de sua própria companhia de teatro, chamada Hydra, aliviou suas angústias e deu vazão à sua caudalosa imaginação.

Rumo a Londres e aos livros sangrentos

Após concluir os estudos, Clive Barker decidiu partir para Londres. O ano era 1976, e lá ele se estabeleceu com outra trupe de teatro, nomeada The Dog Company. Aliás, um dos atores (e fundadores) do grupo era Doug Bradley -- amigo de infância do autor. Onze anos depois, Bradley interpretaria, nas telonas, o Cenobita Pinhead.

Mas, antes disso, Barker já mostrava a que vinha com uma poderosa coleção de histórias curtas: aquelas que compõem os Livros de Sangue, distribuídas em seis volumes. Os três primeiros saíram entre 1984 e 1985 e foram imediatamente bem-sucedidos, ficando entre os best-sellers britânicos da época. E ao serem editados nos EUA, a recepção foi igualmente calorosa.

Pudera: histórias como Nas Montanhas, As Cidades, O Trem de Carne da Meia-noite, O Filho de Celuloide e Jacqueline Ess: Sua Vontade e seu Testamento, entre outras, já revelavam uma impressionante exuberância criativa.

Explorando temáticas diferentes, Barker convidava o leitor a gravitar entre o sublime e o ofensivo, entre o irresistível e o medonho. Nos Livros de Sangue, também já observamos uma operação que se tornaria marca distintiva do autor: o uso de seduções das mais diversas naturezas (muitas vezes sexuais, é verdade) como isca, enquanto a clava dos horrores permanece engenhosamente oculta até descer com força sobre o juízo das personagens -- e sobre o nosso, claro.

Da celulose ao celuloide

Com o sucesso dos contos, Clive Barker passou a produzir intensamente. Em 1985, publicou seu primeiro romance, O Jogo da Perdição. Logo depois escreveu mais três edições de Livros de Sangue e lançou outras duas histórias longas: A Trama da Maldade e Raça da Noite.

A opulência imaginativa não se restringia à literatura e ao teatro: o cinema também estava no radar. Barker já acumulava duas experiências como roteirista de filmes baseados em suas próprias histórias: Underworld (também chamado de Transmutations) e Rawhead Rex, ambos dirigidos pelo conterrâneo George Pavlou.

Pinhead sobe (ou desce) ao panteão

No entanto, foram filmes de baixíssimo orçamento e fiascos de crítica e público. Clive Barker, então, decidiu conduzir por conta própria suas próximas investidas na sétima arte. Foi assim que, em 1987, ele concluiu o filme que o projetou de vez, tanto no cinema quanto na literatura: o já mencionado Hellraiser, adaptação do romance The Hellbound Heart, publicado um ano antes.

Caso raro em que o autor é o próprio responsável pela adaptação cinematográfica, Hellraiser acabou dando muito certo. Apontado como “um pináculo do gênero de horror” pela crítica especializada, o filme apostava numa estética e numa ambiência carregadas, que, embora hoje possam parecer um tanto excessivas, continuam capazes de coletar novos fãs por aí. Tanto que a franquia estendeu-se por nove — sim, nove — sequências (pelo menos até agora), e ganhou também versão em quadrinhos.

Aliás, talvez não seja demais afirmar que Pinhead tornou-se um dos mais celebrados vilões cinematográficos de todos os tempos. Quem seria capaz de contestar seu posto ao lado de Freddy Krueger, Jason Voorhees, Chucky e Michael Myers, entre outros?

Queer horror, games e criançada

Quanto a seu criador: após Hellraiser, Clive Barker também projetou-se mundialmente. Nos anos 1990 ele se mudou para os EUA, onde continuou e continua a escrever (voltando-se para livros de fantasia, como Imajica, Everville, Galilee e Abarat, entre outros), a dirigir filmes (Nightbreed e Mestre das Ilusões), a produzi-los (Deuses e Monstros), a escrever peças etc.

E ainda que se questione a qualidade de algumas de suas obras mais recentes, não se pode negar a coragem com que Barker traçou seu próprio caminho até aqui. Não se pode refutar a audácia com que explorou “as regiões mais distantes da experiência” literária e artística.

Seja apostando em personagens e enredos LGBT (hoje Barker é um dos expoentes do gênero conhecido como queer horror), seja experimentando novos formatos (atuou como designer dos games Clive Barker’s Undying e Jericho) ou seja elegendo novos públicos para os quais escrever (como as crianças, a quem destinou o livro Thief of Always), do pecado da covardia esse demônio jamais poderá ser acusado. Tampouco esse anjo.

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