
O ano começou animado para fãs de horror e criaturas da noite em geral. No dia 2 de janeiro, estreou por aqui a aguardada refilmagem/versão de Nosferatu escrita e dirigida pelo estadunidense Robert Eggers. A expectativa era alta por alguns motivos: em primeiro lugar, os filmes anteriores de Eggers. Encabeçados por A bruxa (2015), os títulos o projetaram como um dos grandes nomes da nova geração de cineastas ligados ao horror. Por alguns anos, ele formou com Ari Aster (de Hereditário e Midsommar) a dupla cujos filmes fundamentavam os argumentos de quem enxergava uma renovação da estética do horror no cinema. Mas mesmo para quem não pensava assim, A bruxa e O farol (2019) proporcionaram experiências marcantes: ficou fácil defender Eggers como um esteta de talento, um hábil criador de atmosferas sinistras.
Outro motivo para a animação era a própria obra refilmada. Nosferatu - Uma sinfonia do horror é, para muitos e muitas, o maior clássico do cinema de horror, até por datar dos primórdios do gênero. Foi lançado em 1922 como idealização do produtor Albin Grau, o “dono” do projeto, que também concebeu sua orientação horrorífica. Para a direção, ele chamou Friedrich Wilhelm Murnau, um cineasta de carreira curta mas já bem sucedida, e o roteiro ficou a cargo de Henrik Galeen, que havia escrito e dirigido O golem e viria fazer o mesmo com O estudante de Praga. Talvez você conheça a história em torno do filme de Murnau, mas seu tom dramático convida a relembrá-la.
Ao escrever o roteiro, Galeen basicamente adaptou o romance Drácula, de Bram Stoker (que falecera em 1912, dez anos antes do lançamento do filme). A estrutura é a mesma: um jovem é enviado a um castelo na Transilvânia para intermediar a compra de um imóvel por parte de um excêntrico nobre local, um conde. Enquanto isso, sua esposa tem pressentimentos de que algo horrível vá acontecer. E de fato acontece: o conde se torna obcecado por ela e, ao sair da Transilvânia rumo à cidade em que o casal vive, leva a morte consigo.
Galeen mudou os nomes de personagens e vários detalhes em sua versão. O conde Drácula passou a se chamar Orlok, Jonathan e Mina Harker viraram Thomas e Ellen Hutter, e Van Helsing se tornou o professor Bulwer, entre outros. A principal alteração diz respeito ao terço final do filme, quando, ao desembarcar na cidade fictícia de Wisborg com seus caixões cheios de terra da Transilvânia e ratos, Orlok deflagra a peste no local. As mortes se acumulam e não é possível saber se por agência do vampiro ou da doença; uma grande sacada do roteiro.
Acontece que os direitos da obra original não haviam sido adquiridos. Mesmo com as mudanças, Florence Balcombe, a viúva de Stoker, acusou o plágio e processou a produtora do filme, Prana. Saiu vencedora e uma ordem judicial impôs que todas as cópias de Nosferatu fossem destruídas. Felizmente, algumas sobreviveram.
De lá para cá, o longa se tornou um paradigma não só do expressionismo alemão, mas do cinema de horror no geral. Em especial graças ao vampiro interpretado por Max Schreck, cuja presença em cena é insuperável. Murnau também era um tremendo criador de imagens a partir de contrastes — fossem entre claro e escuro, fossem entre a exaltação e o relaxamento das expressões dos atores —, o que conferiu uma atmosfera de tensão crescente ao filme, estabelecendo-o como uma referência definitiva para o que veio a seguir.
Em 1979, já com o romance de Stoker em domínio público, o também alemão Werner Herzog lançou sua versão do clássico, intitulado Nosferatu - O vampiro da noite. Com Klaus Kinski interpretando o conde Orlok, e Isabelle Adjani e Bruno Ganz nos papéis do casal por ele destruído, o filme é uma homenagem à obra de Murnau, “talvez o maior filme alemão já feito”, de acordo com o próprio Herzog.
Esta “refilmomenagem” de Herzog é, na opinião deste colunista (e de muita gente), uma obra-prima do horror. Além de contar com um orçamento robusto, o diretor também foi o produtor do filme, o que lhe assegurou total liberdade criativa e controle sobre o resultado final. E que resultado: graças aos contrastes (aqui esmaecidos, entre o azul e o vermelho) e à trilha hipnótica do grupo alemão Popol Vuh, o filme transcorre como um transe, como se a própria obra estivesse sujeita aos poderes telepáticos de Orlok. Que, por sinal, as obsessões de Kinski tornam aterrador. E o clima onírico vai se intensificando até um desfecho impressionante, mais sinistro do que o de 1922. Mesmo os personagens periféricos parecem saídos de um sonho, deslocando-se como autômatos em meio às brumas.
Foi diante desse histórico, então, que Robert Eggers nos apresentou sua própria versão dos fatos. Alardeado como o projeto mais ambicioso do diretor — no qual ele trabalhava desde 2015 —, Nosferatu (apenas, sem subtítulo) chegou às salas ao redor do mundo com a força de uma entidade sobrenatural. Orçado em U$S 50 milhões, o filme já arrecadou, globalmente, mais de U$S 100 milhões em menos de três semanas de exibição — a estreia aconteceu em 25 de dezembro do ano passado, nos EUA.
Quanto à obra em si, antes de mais nada é preciso dizer que este Nosferatu é, acima de tudo, de Eggers. Uma obviedade, eu sei, mas é importante lembrá-lo. Quando amamos um filme, somos um tanto donos dele; nós o reivindicamos. O diretor de A bruxa ama o filme alemão desde os nove anos, quando o viu pela primeira vez. E assim como Herzog fez o Nosferatu do Herzog, Eggers faz o seu. Suas marcas logo se revelam: é uma obra deslumbrante, esfumaçada e feérica, com cenas que beiram a revelação mística — créditos a Jarin Blaschke, diretor de fotografia e parceiro de Eggers em todos os seus filmes. O confronto ao puritanismo e os vínculos entre morte e sexo, forças motrizes de A bruxa, aqui também ganham saliência.
O conde Orlok é interpretado por Bill Skarsgard, que, depois do palhaço Pennywise na refilmagem de It, se estabelece como um antagonista carismático no meio do horror. Aqui, ele está mais para um cadáver ressuscitado de Vlad Tepes (o personagem histórico no qual Stoker em parte se inspirou para criar seu Drácula) do que para o Orlok dos filmes anteriores, e isso é um mérito. A composição visual do monstro é impressionante, assim como toda a sequência. Orlok vai aparecendo aos poucos, revelando-se a um Thomas Hutter (Nicholas Hoult) e uma plateia legitimamente aterrorizados.
Mas o que poderia ser uma das forças do filme, vira uma fragilidade. O conde Orlok não para de falar. Literalmente. Já no prólogo ele envia comandos de voz para Ellen Hutter (Lily Rose Depp, filha de Johnny Depp e de Vanessa Paradis), e toda a sua presença em tela é acompanhada por uma ladainha num tom de barítono — que Skarsgard atingiu graças à preparação com uma cantora de ópera e também graças à pós-produção. Sim, é sombrio e inquietante, mas logo se torna cansativo. Eggers de fato quis traçar a linha entre seu Nosferatu e os anteriores, nos quais os vampiros falavam pouco. É evidente o propósito. Porém, senti falta de algum silêncio, ainda mais em um mundo tão barulhento como o de hoje. Também senti falta de mais expressões do próprio conde, que surge apenas de cenho franzido, o rosto malévolo fixo num esgar que logo fica entediante. Um desperdício do versátil Skarsgard.
Não tardou para que este Orlok se saísse como uma síntese do filme — ele também barulhento e sem muito a oferecer além de cenas malvadas. Algumas delas poderosas, de fato, mas no todo não encontrei a personalidade, o élan que se esperaria de um personagem e um filme ref(v)erenciando outros de mais de cem anos de idade. Mesmo tentando imaginar o filme como obra original, e não derivada de outros, Nosferatu resulta em um acúmulo de clímaces, com a trilha de Robin Carolan jamais deixando dúvidas sobre o que devemos sentir.
O enredo tampouco contribui. Uma diferença importante entre esta versão e as anteriores é que ela se concentra em Ellen, enquanto os filmes de Murnau e Herzog focavam ora em Thomas/Jonathan, ora na esposa. Assim sendo, toda a história é desenvolvida a partir da conexão psíquica/cósmica entre Ellen e Orlok, o que exige aprofundar o subtexto ocultista apenas mencionado na trama original. Isso envolve um pacto fáustico e uma comunhão sobrenatural por meio de rituais que, dentro da estrutura do filme, acabam soando genéricos, dispersando a pouca personalidade reunida até ali. Os limitados recursos cênicos de Lily-Rose Depp também frustram nosso envolvimento com a personagem.
Em todo caso, Nosferatu já é, por si só, um acontecimento. Raras vezes um filme de horror foi tão antecipado. Aqui no Brasil, a versão de Eggers vem lotando sala atrás de sala e levando milhares de pessoas a ver (ou rever) as obras anteriores — inclusive uma outra, independente, de 2023, dirigida por David Lee Fisher e com Doug Jones (O labirinto do Fauno, A forma da água) como Orlok. Temos ainda o alento de ver Willem Dafoe, sempre ótimo, como o professor Von Franz, o Van Helsing de Eggers. E pensando bem, antes ouvir sem parar a voz de Orlok do que “Descer pra BC”.
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