Resumo: Este trabalho pretende analisar em que medida os elementos formais da narrativa gótica e o conceito de "infamiliar" de Freud colaboram para a criação de efeitos relacionados ao assombro no romance The haunting of Hill House (1959), da autora estadunidense Shirley Jackson. No tocante aos espaços, será analisado de que forma a casa do título filia-se à tradição gótica. Já no plano das personagens, será investigado o papel exercido, na constituição psicológica da protagonista Nell, pelo pressuposto freudiano-psicanalítico de unheimlich. Após essa investigação, proceder-se-á à análise de como ambos contribuem para a recepção da obra, com a intenção de abordar os possíveis efeitos de desestabilização causados pela leitura.
Palavras-chave: gótico; infamiliar; unheimlich; assombro
Sessenta anos após sua primeira publicação, em 1959, o romance A Assombração da Casa
da Colina (The Haunting of Hill House), da estadunidense Shirley Jackson, continua
sendo reeditado, lido, celebrado e adaptado para outras linguagens. A combinação de
elementos herdados da narrativa gótica e de recursos estilísticos vinculados ao
modernismo literário, que permitem a exploração de meandros psicológicos das
personagens, parece preservar a singularidade de uma obra cujo fascínio sobre os leitores
não dá sinais de arrefecer.
Este trabalho pretende analisar em que medida os espaços góticos e os preceitos
estabelecidos por Sigmund Freud no ensaio “Das Unheimliche” (1919) contribuem para
constituir tal singularidade. Também objetiva-se aproximar a conceituação de locus
horrendus, que será descrita mais à frente, à do unheimlich freudiano, uma vez que, em
ambas, há a ameaça de retorno daquilo que deveria permanecer no passado, solapado ou
recalcado. Ao longo da análise, serão apontadas as marcas constitutivas do fantástico na
narrativa, tendo como base os postulados do teórico espanhol David Roas.
Como percurso, propõe-se a recuperação de conceitos fundamentais sobre a
narrativa gótica, de modo a verificar como a obra de Jackson se insere nessa vertente por
meio do espaço. A seguir, serão destacados os pontos centrais do ensaio de Freud -- a
partir da mais recente tradução para o português, intitulada O infamiliar (2019) --, que
proporcionam uma chave de interpretação determinante para os efeitos causados pela
narrativa. Por fim, a própria narrativa será analisada à luz desses conceitos e também do
fantástico, dirigindo-se o foco a três pontos principais: o enredo, a construção da
protagonista e os efeitos da irrupção do sobrenatural, considerando-se a recepção do
leitor.
No The Cambridge Companion to Gothic Fiction (2012), Jerrold Hogle,
pesquisador estadunidense, apresenta a narrativa gótica da seguinte forma:
Trata-se de um fenômeno totalmente pós-medieval, e mesmo pós-
renascentista. Apesar de muitas formas literárias já existentes combinarem
suas representações iniciais -- da prosa e da poesia românicas até as tragédias
e comédias de Shakespeare --, a primeira publicação a intitular-se “Uma
história gótica” foi um falso relato medieval lançado muito tempo depois da
Idade Média: O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, impresso sob
pseudônimo na Inglaterra em 1764 e reimpresso em 1765, em uma segunda
edição com um novo prefácio que defendia abertamente uma “mistura de dois
tipos de romance, o antigo e o moderno”, o primeiro “todo imaginação e
improbabilidade”, e o segundo presidido pelas “regras da probabilidade”
conectadas com “a vida comum”. (HOGLE, 2002, p. 01)
Na época da publicação do romance de Walpole, o termo “gótico” carregava
conotações depreciativas, uma vez que, para o autor e seus contemporâneos, remetia a
um período de barbárie, superstição e anarquia (“todo imaginação e improbabilidade”),
quando as invasões de Visigodos e Ostrogodos (os Godos, daí o termo “gótico”)
precipitaram a queda do Império Romano. O enredo de O Castelo de Otranto reflete tal
concepção: Manfredo, Príncipe do Castelo que dá nome à narrativa, luta contra antigas
maldições (às quais ele se refere, em um primeiro momento, como “crendices”) para
preservar a posse da propriedade. A narrativa é construída a partir da luta do protagonista
contra os espectros e os fantasmas do trágico passado de que o local foi palco -- eventos
que ameaçam a manutenção de sua linhagem e de sua nobreza.
A publicação obteve enorme sucesso e deu origem a inúmeros outros relatos de
estética semelhante, em cuja trama os espaços assombrados ou amaldiçoados ocupavam
posição central. Assim ganhou relevo, nas narrativas góticas, o locus horrendus, ou "lugar
horrível", o oposto de locus amoenus, ou "lugar ameno". Tais expressões foram herdadas
do arcadismo e referem-se a um dos tópicos centrais do romantismo, movimento
filosófico-literário que floresceu concomitantemente ao gótico. Na gênese dessa última
vertente, castelos, abadias e outras construções associadas ao medievo predominavam
como loci horrendi.
No decorrer das décadas seguintes, observou-se o esgotamento desta fórmula
inicial. A partir do século XIX, fantasmas, espectros e outros agentes sobrenaturais do
passado, tão característicos do gótico, transferiram-se de castelos em ruínas para
ambientes domésticos, figurando então como ameaças à estabilidade financeira e à
estrutura familiar.
Já no início do século XX, com o surgimento de teorias psicanalíticas e com as
rupturas formais e estéticas vinculadas do modernismo literário, o tema do espaço
assombrado se complexifica. Assume outros contornos, tornando-se metafórico de
territórios mentais de personagens e podendo associar-se às nuances da natureza humana.
A autora inglesa Virginia Woolf refletiu sobre essa mudança estrutural no ensaio
intitulado “Across the Border”:
De fato, a visão dos mortos reanimados seria agora tratada como humorística,
romântica ou talvez patriótica, mas dificilmente assumiria qualquer intenção
de fazer nossa carne enregelar-se. Para isso, o autor deve mudar sua direção;
ele deve nos aterrorizar não por meio dos fantasmas dos mortos, mas por meio
dos fantasmas que vivem em nós mesmos. (WOOLF, 1990, p. 219)
O romance de Shirley Jackson situa-se neste contexto. A Casa da Colina do título
é, ao mesmo tempo, o palco e o núcleo da narrativa, uma vez que é nela -- e por causa
dela -- que reúnem-se os quatro personagens centrais do enredo: Eleanor, Theodora e
Luke, para lá convocados pelo Dr. John Montague para investigarem os eventos
sobrenaturais supostamente atribuídos ao local. A descrição da casa por Jackson revela,
recorrentemente, um diálogo com o gótico clássico:
Essa casa, que parecia ter se formado sozinha, voando ao mesmo tempo até
formar seu padrão potente sob as mãos dos construtores, se ajustando à própria
construção de traços e ângulos, levantava sua enorme cabeça para o céu sem
fazer concessões à humanidade. Era uma casa sem bondade, jamais feita para
ser habitada, não era um lugar adequado a pessoas ou ao amor ou à esperança.
O exorcismo não consegue mudar o semblante de uma casa; a Casa da Colina
continuaria igual até ser destruída. (JACKSON, 2018, p. 36)
Trata-se do locus horrendus ideal: espaço hostil, cenário de tragédias no passado,
situado em uma região desolada, de arquitetura arcaica e labiríntica. No entanto, à medida
em que desenvolve sua narrativa, Jackson torna evidente uma relação especular entre a
casa e o território mental de Eleanor, a protagonista. Jovem solitária, sensível e
aparentemente frágil, também ela é assombrada por eventos dramáticos de seu passado,
que não são totalmente revelados aos leitores -- sabe-se da morte da mãe, de quem ela
cuidava, e da relação problemática com a irmã, o cunhado e a sobrinha.
A Casa da Colina espelha a confusão da personagem; torna-se metáfora de sua
complexidade, de seus recônditos voluntariamente evitados. E é justamente nesses
recessos -- tanto exteriores quanto interiores -- que manifestam-se os espectros daquilo
que deveria permanecer morto, esquecido ou recalcado; um procedimento
fundamentalmente gótico, que aqui defende-se ter sido recontextualizado por Jackson à
luz da psicologia. Para que se compreenda melhor esta operação, torna-se necessário
recorrer à teorização de Freud.
Publicado pela primeira vez em 1919, o ensaio “Das Unheimliche” apresenta uma
reflexão estética do fundador da psicanálise a partir da literatura. No texto, Freud se detém
em obras “que dizem respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror” (p. 29)
para investigar as origens do efeito por ele nomeado como unheimlich. O termo alemão
tem etimologia complexa: “heimlich” significa “doméstico, familiar, pertencente à casa”,
mas o prefixo “un” inverte esses conceitos.
A edição utilizada nesta análise é recente no Brasil, e verte o termo como
“infamiliar" (2019). Os tradutores Gilson Iannini e Pedro Heliodoro Tavares assim
justificam a escolha, contribuindo também para a acepção do conceito cunhado por Freud:
O unheimlich é uma negação que se sobrepõe ao heimlich apreendido tanto
positiva quanto negativamente: é, portanto, uma reduplicação dessa negação,
que acentua seu caráter angustiante e assustador. A palavra em português que
melhor desempenha esse aspecto parece ser “infamiliar”: do mesmo modo, ela
acrescenta uma negação a uma palavra que abriga tanto o sentido positivo de
algo que conhecemos e reconhecemos quanto o sentido negativo de algo que
desconhecemos. (IANNINI; TAVARES in FREUD, 2019, p. 10-11)
Com efeito, logo no início do ensaio, o fundador da psicanálise estabelece o
unheimlich/infamiliar como “não conhecido” (FREUD, 2019, p. 33). Mais à frente, Freud
postula que o “Infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas
que veio à tona” (FREUD, 2019, p. 45); “nada tem realmente de novo ou de estranho,
mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de
recalcamento” (FREUD, 2019, p. 85).
Assim se destaca, no ensaio, o retorno daquilo que há muito era perfeitamente
conhecido pelo sujeito, mas que por algum motivo torna-se alheio, estranho, infamiliar.
Para Freud, é justamente esse movimento pendular a causa das sensações de estranheza e
de horror vinculadas a narrativas como O Homem da Areia, novela de E.T.A. Hoffmann
que constitui o corpus de “Das Unheimliche”. E para os autores deste trabalho, A
Assombração da Casa da Colina também poderia enquadrar-se neste escopo.
Narrado em terceira pessoa, o romance de Shirley Jackson evoca o infamiliar
freudiano já no nível mais imediato: o enredo. É possível perceber essa construção logo
no primeiro parágrafo da narrativa, que estabelece a ambientação e aponta a casa como
vértice da história:
Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob
condições de realidade absoluta, até cotovias e gafanhotos, supõem alguns,
sonham. A Casa da Colina, desprovida de sanidade, se erguia solitária contra
os montes, aprisionando as trevas em seu interior; estava desse jeito havia
oitenta anos e talvez continuasse por mais oitenta. Lá dentro, paredes
continuavam de pé, tijolos se juntavam com perfeição, assoalhos estavam
firmes e portas estavam sensatamente fechadas; o silêncio se escorava com
equilíbrio na madeira e nas pedras da Casa da Colina, e o que entrasse ali,
entrava sozinho. (JACKSON, 2018, p. 7)
A sensação de estranhamento se manifesta logo no início do texto. Ao afirmar a
impossibilidade de qualquer organismo preservar a sanidade sob condições de realidade
absoluta -- e ao apresentar a Casa da Colina como desprovida de sanidade --, a narração
sujeita o local a tal condição. Pode-se interpretar que as “condições de realidade absoluta”
não admitem fantasia ou recalque, ambos fundamentais para o equilíbrio mental;
portanto, intui-se que, na casa, tudo aquilo que está oculto será exposto.
Em seguida, a descrição detém-se na materialidade da construção, destacando
paredes, tijolos e assoalhos. No entanto, a concretude dá lugar a aspectos humanizados
da residência: as portas estavam “sensatamente fechadas” e “o silêncio se escorava na
madeira”, conferindo-lhe personalidade. Por fim, o arremate: tudo o que entrasse na casa,
“entrava sozinho”. Depreende-se, daí, que também sozinho quem quer que entrasse na
casa enfrentaria uma condição de realidade absoluta, na qual aquilo que fora recalcado
seria trazido à luz.
Após a apresentação da propriedade, entram em cena os personagens já
mencionados. Cada um é introduzido por meio de uma breve anedota -- recurso
inteligentemente utilizado por Jackson, uma vez que permite ao leitor imaginar que
Eleanor, Theodora, Luke e o Dr. Montague já se conheciam previamente, o que não é
verdade. Tal percepção é intensificada quando os personagens finalmente se encontram
dentro da casa: a intimidade entre eles surge quase que imediatamente, e os quatro
organizam-se como uma família. Nesta mise-en-scène inicial, predomina o familiar, o
doméstico, o (re)conhecido; é quando tem início o movimento pendular -- e estranho --
rumo ao infamiliar que permeará toda a narrativa.
Essa oscilação é perceptível também na arquitetura da casa. Por se tratar de uma
antiga residência de família, o local transmite, em um primeiro momento e à revelia de
não ser “adequado a pessoas ou ao amor ou à esperança”, a sensação de segurança
característica dos ambientes domésticos. Mas tal percepção vai sucumbindo ao longo da
narrativa, diante de acontecimentos que fogem ao explicável, e que mais adiante serão
abordados. Antes, é preciso constatar que, ao longo da história, os ambientes do local
oferecem aos personagens momentos completamente opostos: de descontração e
tranquilidade, mas também de puro desespero, uma vez que há trechos em que nenhum
deles sabe como se deslocar pelo interior da residência.
Em relação aos personagens, a contraposição familiar/infamiliar é ainda mais
intensa. A narrativa focaliza Eleanor; é por meio dela que se conhecem a Casa da Colina
e os outros frequentadores. Para a composição psicológica da protagonista, Jackson
utiliza recursos como monólogos interiores, discurso livre indireto e, em certa medida,
fluxos de consciência; desta combinação surge uma figura tão verdadeira quanto
suscetível, próxima dos leitores. Em dado momento da história, o nome de Eleanor é
substituído pelo apelido Nellie -- uma evidência da intenção de Jackson de fortalecer essa
intimidade.
Logo na apresentação preliminar de Eleanor, a autora já destaca os elementos
principais de sua personalidade:
Eleanor Vance tinha trinta e dois anos quando foi à Casa da Colina. A única
pessoa do mundo que odiava de verdade, agora que a mãe havia falecido, era
a irmã. Desgostava do cunhado e da sobrinha de cinco anos e não tinha amigos.
Isso se devia em grande parte aos onze anos que passara cuidando da mãe
inválida, que a deixara com certa competência como enfermeira e a
incapacidade de encarar o sol forte sem piscar. Não conseguia se lembrar de
nenhum momento de felicidade genuína de sua vida adulta; os anos com a mãe
haviam sido erigidos com zelo em torno de pequenas culpas e pequenas
repreensões, cansaço constante e desespero interminável. Sem nunca querer se
tornar reservada ou tímida, havia passado tanto tempo sozinha, sem ninguém
para amar, que era complicado para ela falar, até mesmo casualmente, com
outra pessoa sem acanhamento e uma incapacidade desastrada de achar
palavras. (JACKSON, 2018, p.10)
Durante a narrativa, Jackson fornece poucas informações sobre o passado de
Eleanor. Sabe-se que ela cuidou por anos da mãe doente, e que não se dava bem com a
irmã, o cunhado e a sobrinha. Tornam-se claras sua inabilidade social e a sensação de que
pouco experimentou da felicidade, despendendo boa parte da vida cuidando de outra
pessoa. Também é evidente que a lembrança da mãe a incomoda, de modo que ela a evita,
a oculta.
No entanto, como proposto acima, o recalque não tem lugar na Casa da Colina.
Assim sendo, as perturbações do passado aos poucos escapam do controle de Eleanor;
vão surgindo para assombrá-la na forma de ruídos nos corredores, pancadas na parede
(similares às batidas que a mãe dava quando precisava chamá-la), risadas infantis e até
mesmo o próprio nome escrito em giz na parede, na frase “AJUDE ELEANOR A VIR
PARA CASA” (JACKSON, 2018, p. 139). A respeito desse inquietante acontecimento,
é elucidativo o seguinte trecho:
Tenho sempre medo de estar sozinha”, Eleanor disse, e se questionou: Eu estou
falando desse jeito? será que estou falando uma coisa de que vou me arrepender
amargamente amanhã? Estou trazendo ainda mais culpa para mim mesma?
“Aquelas letras formavam o meu nome e nenhum de vocês sabe o que é isso -
é tão familiar.” E ela gesticulou na direção deles, quase suplicando. “Tentem
enxergar”, pediu. É meu nomezinho querido, e ele é meu, e tem alguma coisa
usando e escrevendo e me chamando com ele e meu próprio nome...” Ela
parou e disse, olhando de um em um, até para baixo, para o rosto de Theodora,
voltado para cima: “Olha. Só existe uma de mim, e é só isso que eu tenho.
Odeio me ver dissolvendo e perdendo e dispersando a ponto de viver só com a
metade, a da minha mente, e ver a outra metade de mim indefesa e desvairada
e compulsiva e não consigo parar, mas sei que não vou me machucar de
verdade e no entanto o tempo é tão longo e até um segundo se prolonga e
prolonga e eu seria capaz de aguentar isso tudo se ao menos pudesse me
entregar... (JACKSON, 2018, p. 152-153, grifos de nossa autoria)
Nada pode ser mais familiar para a personagem do que seu próprio nome. No
entanto, ele aí surge inexplicavelmente descontextualizado; funciona como índice de sua
dissolução, como evidência de seu descontrole.
Nesse sentido, é importante salientar, também, a fragilidade e a solidão de
Eleanor. Antes de ir para a Casa da Colina, ela jamais conseguiu estabelecer conexões
afetivas, em parte pelos anos cuidando da mãe doente; assim, ao chegar ao local, expressa
vontade de pertencer à “família” que ali se organiza. Nesse ímpeto, ela passa a gravitar
entre os outros personagens -- especialmente na direção de Theodora, a quem, por várias
vezes, tem como melhor amiga.
Mas o movimento é novamente pendular. Em certas passagens, as duas comentam
que poderiam até ser primas e chegam a fazer planos de morar juntas. Em outras,
Theodora age como se não conhecesse Eleanor, ou mesmo como se a odiasse sem motivo
aparente. Ou, ainda, Eleanor fantasia agressões à amiga por ela estar irritada com a sua
personalidade volúvel. Aqui podemos constatar outro índice da relação
familiar/infamiliar, uma vez que esse movimento inesperado e injustificado desperta
estranheza no leitor.
Mais adiante na narrativa, já com os personagens bastante afetados pelos
fenômenos da casa, duas novas pessoas entram em cena: a sra. Montague, esposa do Dr.
John, e seu assistente, Arthur. A chegada de ambos altera a dinâmica dos personagens; o
doutor, cujo conhecimento até então o alçava acima dos demais, passa a ocupar uma
posição vulnerável. Sua esposa assume o posto de comando; dona de uma personalidade
intimidadora, ela faz com que os outros frequentadores da casa se sintam envergonhados
de seus próprios medos. Assim que chega, a sra. Montague os repreende por assustarem-
se com os contatos de espíritos que, segundo ela, somente querem ser ouvidos. Junto com
seu assistente, pede para ocupar o quarto mais assombrado da casa, no qual tenta
comunicar-se com os espíritos que lá habitam.
Durante a noite, a sra. Montague e seu assistente estabelecem contato por meio de
uma prancheta - bem parecida com uma tábua ouija. Na manhã seguinte, os dois leem a
conversa sobrenatural para os colegas. No trecho em que perguntaram ao “fantasma”
sobre sua identidade, a resposta foi clara:
“Nell”, a sra. Montague leu com sua voz estridente e Eleanor, Theodora, Luke
e o doutor se viraram, escutando com atenção.
“Que Nell?”
“Eleanor Nellie Nell Nell. É normal eles fazerem isso”, a sra. Montague
interrompeu para explicar. “Repetem uma palavra várias vezes para ter certeza
de que ela foi bem entendida,”
Arthur pigarreou. “O que você quer?”, ele leu.
“Casa.”
“Você quer ir para casa?” E Theodora deu de ombros para Eleanor
comicamente.
“Quero estar em casa”
“O que você está fazendo aqui?”
“Esperando.”
[...]
“Por quê?”, leu Arthur.
“Mãe”, leu a sra. Montague. (JACKSON, 2018, p. 183-184)
A resposta do fantasma não é apenas o nome “Eleanor”, mas todas as variantes
dele, afastando quaisquer dúvidas sobre a identidade da manifestação. As fantasmagorias
das memórias e dos traumas de Eleanor não só estão de volta, como são expostas a todos.
Tem-se, aqui, uma manifestação literal do infamiliar freudiano: algo que um dia foi
conhecido e familiar, mas que reaparece diferente o suficiente para causar desconforto,
angústia. Por conveniência, a sra. Montague menciona que os espíritos costumam repetir-
se frequentemente. Sobre esta compulsão pela repetição e sobre a estrutura psíquica de
Eleanor, novamente a psicanálise fornece um caminho interpretativo:
Quando pessoas desfamiliarizadas com a análise sentem um medo obscuro, um
temor de despertar algo que, segundo pensam, é melhor deixar adormecido,
aquilo de que no fundo têm medo é o surgimento dessa compulsão, com sua
sugestão de posse por algum poder ‘demoníaco’. (FREUD, 1973, p. 53)
Para Freud, a repetição pode manifestar-se como retorno daquilo que foi
recalcado. Um movimento por meio do qual a pessoa reproduz o conteúdo não como
memória, mas como ação, sem tomar consciência de que está se repetindo. O
desconhecimento do vínculo entre a ação e o conteúdo recalcado leva à compulsão da
repetição.
No caso de Eleanor, o que foi de fato recalcado não fica claro em momento algum.
O texto de Jackson revela apenas a compulsão à repetição, com o retorno, na forma de
sobrenatural, daquilo que a protagonista gostaria que permanecesse escondido. Uma
manifestação mutante, incontrolável, que leva à deterioração mental da personagem.
Por último, destacam-se os marcadores do fantástico na narrativa e seus
subsequentes efeitos, que vão se adensando conforme a história se desenvolve e que
também podem ser relacionados à conjugação familiar/infamiliar. Para que se entenda
essa operação, é necessário recorrer a postulados que nela priorizem o leitor, afastando-
se de concepções estruturalistas ou imanentistas. É o caso do teórico espanhol David
Roas, para quem
o fantástico se caracteriza por propor um conflito entre (a nossa ideia de) real e o impossível. E o essencial para que tal conflito gere um efeito fantástico não
é a hesitação ou a incerteza nas quais muitos teóricos (desde o ensaio de
Todorov) seguem insistindo, mas sim a inexplicabilidade do fenômeno. E essa
inexplicabilidade não se determina exclusivamente no âmbito intratextual, mas
envolve o próprio leitor. (2011, p. 30-31)
De acordo com o autor do ensaio Tras los límites de lo real - Una definición de lo
fantástico, o mundo construído nos relatos fantásticos é sempre um reflexo da realidade
na qual habita o receptor. Como já foi afirmado, os recursos retóricos utilizados por
Shriley Jackson -- sobretudo na construção de sua protagonista -- favorecem essa relação
especular, tanto entre a casa e Eleanor, quanto entre Eleanor e o leitor, que passa inclusive
a chamá-la de Nellie.
Roas também vincula o medo, e suas sensações correlatas, à expressão do fantástico: “[o medo] é uma condição necessária para a criação do fantástico, porque é seu efeito fundamental, produto dessa transgressão de nossa ideia do real” (ROAS, 2011, p. 88). Conforme A Assombração da Casa da Colina encaminha-se para o desfecho, tais
transgressões se adensam. Inicialmente figurando apenas como uma “sensação ruim”, o
“impossível” a que se refere Roas torna-se recorrente.
A narrativa tem início com uma casa pitoresca com retoques de estranheza, que
abriga hóspedes bem dispostos e aventureiros. Eles exploram o local, fazem piadas,
interagem, planejam um piquenique no bosque adjacente. Entretanto, o sobrenatural
começa a se insinuar em pequenos eventos, que se tornam cada vez mais frequentes. Os
fenômenos conduzem até a apoteose no final, em que a inversão se completa: tudo na
casa torna-se desconhecido e incômodo para Nellie e para os leitores; e o que antes fora
familiar é agora somente uma tênue lembrança.
No clímax da narrativa, essa inversão atinge ainda um novo patamar: aquele que
se refere à própria Eleanor. Por meio de elipses e supressões, Jackson aos poucos vai
afastando a protagonista não só dos demais personagens, mas também do próprio leitor.
Assolada pela casa e pelos espectros do passado que agora se presentificam, ela se isola
cada vez mais. Sua estrutura psíquica, antes transparente, torna-se opaca, insondável; seus
pensamentos surgem distorcidos, descolados da realidade e difíceis de se compreender.
O movimento pendular entre familiar e infamiliar que perpassa a história torna-se
enfim furioso. Resulta no trágico desfecho, quando, a contragosto, Eleanor é levada até
seu carro pelo Dr. Montague, para que vá embora da casa. Já no veículo, ela toma a
decisão que conclui a narrativa:
Vou mesmo fazer isso, ela pensou, girando o volante para lançar o carro direto
na curva da pista, vou mesmo fazer isso, vou fazer isso totalmente sozinha,
agora, afinal; esta sou eu, vou mesmo, mesmo, mesmo fazer isso sozinha.
No segundo interminável, estrondoso antes de o carro se atirar na
árvore, ela pensou claramente: Por que estou fazendo isso? Por que estou
fazendo isso? Por que eles não me impedem? (JACKSON, 2018, p. 234-235)
Referências
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, [1920] 1976, v. XIII.
FREUD, Sigmund. O Infamiliar [Das Unheimliche] - edição comemorativa bilíngue. São
Paulo: Autêntica, 2019.
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das
Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, [1914] 1969, v. XII.
HOGLE, Jerrold. The Cambridge Companion to Gothic Fiction. Cambridge: Cambridge
University Press, 2012.
JACKSON, Shirley. A Assombração da Casa da Colina. Rio de Janeiro: Suma, 2018.
WALPOLE, Horace. O Castelo de Otranto. São Paulo: Novo Século, 2019.
WOOLF, Virginia. "Across the Border". In: The Essays of Virginia Woolf – 1912-1918,
v. 2. Ed.: Andrew McNeillie. San Diego: Harvest Book, 1990. p. 217-220.
ROAS, David. Tras los límites de lo real - Una definición de lo fantástico. Madri:
Páginas de Espuma, 2011.
*Artigo co-escrito com Nathália Xavier Thomaz e publicado nos Anais do Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) de 2019 (disponíveis aqui).
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