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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Prosopagnosia [Conto de Rafaela Borges - Belas Artes]


Divulgação (fonte: meuelevador.com)

[Nota: ao longo desta e das próximas semanas, publicarei aqui os contos de horror e mistério elaborados por alunas e alunos da disciplina que ministrei na pós-graduação de escrita criativa da Faculdade Belas Artes. O segundo texto é "Prosopagnosia", de Rafaela Borges, uma história não recomendada para quem sofre de claustrofobia. Boa leitura!]


Cecília não poderia estar mais incomodada com o lugar em que se encontrava. Jamais seria capaz de compreender porque a sua filha, que antes vivia com tanta mordomia ao seu lado, escolheu sair de casa para morar em um apartamento como aquele. “Apartamento… Um muquifo, melhor dizendo”, era o que passava em sua mente enquanto atravessava o hall de entrada.

Para alguém acostumada a frequentar apenas casas luxuosas, com grandes e imponentes fachadas, onde todos os funcionários vestiam ternos e os moradores usavam roupas de marcas famosas, entrar em uma residência ordinária como aquela lhe era, no mínimo, estranho. A senhora elegante se destacava, provocando diversos olhares por onde passava, claramente não pertencendo àquela realidade.

Quando enfim chegou ao elevador, hesitou em apertar o sexto andar, pegando um lenço para não ter que tocar diretamente aquele botão que lhe parecia tão engordurado. Questionava se a surpresa que sua filha tinha para lhe contar realmente valia todo esse esforço. Porém, depois de mais de 15 anos sem se verem diretamente, apenas com breves e vagas ligações, estava no mínimo curiosa para saber em que estado ela se encontrava.

Os seus pensamentos foram interrompidos quando uma mão apareceu entre as antigas e sujas portas de metal do elevador antes que se fechassem, impedindo que Cecília seguisse o seu caminho sozinha. Era um garoto, bem jovem, mas com um aspecto acabado que o fazia parecer tão velho quanto ela. Ele entrou trôpego, mal conseguindo cumprimentá-la de uma maneira adequada. “Um bêbado”, pensou com firmeza, “e a garrafinha com líquido amarelo que ele segura é apenas a confirmação”.

— E aí, senhora. Foi mal entrar assim correndo, realmente só quero chegar logo em casa.

— Sem problemas, meu jovem, entendo a sua pressa — dizia ela, forçando um sorriso e alguma empatia por aquele moleque que tinha um cheiro forte de suor.

Como se já não bastasse estar em um lugar imundo como aquele, agora era forçada a dividir o minúsculo elevador com um garoto que estava fora de si. “Um trambiqueiro que deve ter festejado durante toda a madrugada e só agora está voltando para casa”.

— A senhora está bem? Parece nervosa, até suando. Não gosta muito de elevadores?

”Eu? Suando? Que audácia.”

— Tenho uma leve claustrofobia, mas vou ficar bem. É uma viagem curta, já estamos chegando — pensava em voz alta, ao ver no painel do elevador finalmente o número dois aparecendo.

A tendência de Cecília de sempre evitar contato visual com as pessoas colaborou para que um breve silêncio se instaurasse. Até que, entre as goladas no líquido de sua garrafa, o garoto começou a reclamar.

— Ah, que merda! Que dor desgraçada, odeio isso — ele dizia esfregando uma de suas pernas — Desculpa, dona, mas vou precisar mexer elas um pouquinho mais.

Ela não podia acreditar, ele agora dava pulinhos do seu lado. A cada um deles esbarrando um pouco mais nela, batendo em seus braços na descida e derramando gotas de bebida em sua echarpe. Cecília se virou para o garoto e estava prestes a gritar, quando um barulho mais alto foi ouvido e ambos pararam de se mexer.

O elevador parecia não conseguir decidir se estava no quinto ou no sexto andar. De qualquer maneira, as portas continuavam fechadas.

— Que ótimo, isso de novo — disse o garoto enquanto se recostava na parede para dar mais um gole.

— Que barulho foi esse?

— O elevador travou de novo. Mas relaxa, logo logo alguém aparece para abrir a porta.

— Logo logo, quando? — o nervosismo começava a ser notável em sua voz.

— Ah, às vezes demora só alguns minutos, mas se ninguém notar que o elevador parou, pode demorar algumas horas. De qualquer forma, se fosse você, eu sentaria para esperar.

— Algumas horas?! — “Que maravilha, vou ser obrigada a ficar com ele por sabe-se lá quanto tempo. Espero que alguém apareça logo, antes que esse garoto enlouqueça de vez e me machuque”, pensava.

— Não pense que eu estou feliz com isso — dizia ele enquanto se arrastava pela parede e se sentava no chão. — Eu só tô aqui porque esqueci algo quando saí de casa. Agora nem adianta mais ter pressa.

Cecília tinha dúvidas sobre o que seria este “algo” que o garoto poderia ter esquecido. Em sua visão, as vestimentas dele estavam deploráveis demais para que fosse considerado alguém civilizado. “Olha essas roupas… Moletom e camisa amassada… Não ficaria surpresa se o que ele esqueceu fossem drogas ou até algo pior. Vai saber para onde ele estava indo neste estado. Poderia até mesmo estar planejando um assalto e esqueceu a arma”.

Se recusando a sentar-se no chão e ficar tão próxima da sua companhia de elevador, decidiu que ficaria de pé por todo o tempo que fosse necessário. Não importa o quanto os seus pés doessem com os saltos que utilizava.

Aparentemente sem compartilhar do mesmo desconforto da senhora, o garoto foi se aconchegando cada vez mais em seu canto do elevador. Encostou a cabeça na parede e ameaçou fechar os olhos, com piscadas cada vez mais demoradas.

“Não é possível, tem de haver uma forma de chamar alguém para me ajudar.” A sua primeira reação foi olhar para o seu celular. Apesar de ser um modelo de última geração, tudo o que ela pôde fazer foi encarar o seu papel de parede de flores. Não havia sinal de telefonia que permitisse utilizar um de seus aplicativos de conversa e avisar a sua filha que estava presa.

Então, olhou para o painel do elevador, passando por cada um de seus botões. Não conseguiu encontrar nenhum que parecesse disparar um alarme para avisar alguém, o que não era de se surpreender, pois nem ao menos um relógio ele possuía.

— Você não vai conseguir chamar ninguém, senhora… Não adianta tentar. Seremos só eu e você. E nos poupe de gritar, ninguém vai te escutar também — afirmou o garoto ao ver toda a agitação de Cecília.

“Não, não, nada disso. Eu me recuso. Alguém tem que aparecer logo, não vou conseguir ficar tanto tempo aqui, não dá.” Cecília pensava, enquanto olhava ao redor procurando alguma maneira de sair de lá. Para todos os lados, via apenas as paredes, sem nenhuma abertura além das grandes portas.

Apesar de sentir que seria inútil, o seu desespero falava mais alto. Puxou as mangas compridas de seu vestido para poder segurar uma das portas e forçá-la o máximo que conseguia. Depois de alguns minutos, desistiu, percebendo que não havia conseguido mexer sequer um centímetro. A porta do elevador continuava fechada.

Se virou, ficando de costas para as portas, e logo se arrependeu. Focar naquele espaço pequeno lhe deixou ainda mais claustrofóbica. Sua visão começou a embaçar, sua respiração acelerou e as paredes pareciam se fechar ao seu redor, deixando o espaço para se mexer ainda menor.

Esticou os braços, na tentativa de fazer com que as paredes parassem de se aproximar e deixá-la tão próxima daquele arruaceiro que fedia, devia estar bêbado e poderia causar a sua morte.

— Senhora… Por favor, só se senta e espera. Já disse… Não adianta tentar fugir.

“Mas eu preciso fugir!”, era tudo o que passava em sua mente. Juntou as mãos à frente de seu busto e notou o quanto estavam suadas. Ela precisava tentar se acalmar. Fechou os olhos e relaxou o pescoço, abaixando a cabeça. Inspirando pelo nariz e soltando o ar pela boca. Contando lentamente até dez, buscava retirar a sua mente daquele espaço. Porém, quando o garoto esbarrou em uma de suas pernas ao se mexer, a sua atenção voltou para aquele lugar apertado.

Enfim fez contato visual com ele ou, então, o mais próximo que era capaz disso. Ela ainda não se acostumara com aquela visão. Não entendia o porquê isso acontecera com ela. “Simplesmente não faz sentido isso acontecer a alguém como eu. Eu sou melhor do que isso”.

Para alguém que agora evitava olhar para os rostos das pessoas, identificando-as e julgando-as apenas pelas suas roupas e trejeitos, ter aquela visão a hipnotizou por algum tempo. Cecília não conseguia ter certeza se o garoto também a olhava, mas isso não importava.

A cegueira facial a impedia de reconhecer as feições do rosto dele, mas mesmo assim ela o encarava, tentando forçar o seu cérebro a compreender algo, sem sucesso. Ele estava bravo? Sorrindo, talvez? Ou aquilo no canto de sua boca era um sinal de tristeza? Ele estava chorando ou suando? “Pelo cheiro, suando, certamente”.

Frustrada, acabou deixando um suspiro sair de sua boca. Agora, tinha certeza de que ele a encarava. O pescoço dele havia girado em sua direção. “Ele está me olhando? Por quê?”. Ficaram nessa posição pelo que pareceram muitos minutos, talvez horas, até que finalmente ela conseguiu sair do transe e verificar o seu relógio de pulso.

“O ponteiro menor é o das horas, não é…?”, questionava a si mesma. A sua memória poderia estar falhando de novo, pois não fazia sentido o ponteiro dos minutos demorar horas para se mexer.

“Maldita doença”. Não aguentava mais aquela sensação. “Daqui a pouco estarei tão fedida quanto ele, preciso dos meus remédios, preciso me acalmar”, pensava, ao procurar em sua bolsa a pequena caixinha com os novos remédios que o seu médico havia receitado. Mas começava a hesitar em meio a sua busca, quase desejando ter esquecido as suas pílulas.

“A que ponto eu estou chegando… Tomar isso seria aceitar que eu tenho algum problema. Como se isso fosse possível... Eu posso sim entender o rosto dele, eu posso sim saber quem ele é e quais são as suas intenções. Não, não tem nada de errado com a minha cabeça!”, pensava, decidida a nunca mais voltar naquele psiquiatra ou praticar as técnicas que ele sugeria.

Seu olhar encontrou, então, outro objeto fiel com o qual sempre andava: o seu canivete. “Ah, mas este não é um canivete qualquer”, contava a qualquer um que lhe perguntasse, “ele é todo incrustado em jóias e possui uma lâmina firme, mas ainda assim delicada, para que uma dama como eu possa se defender”.

Cecília questionava se aquele seria um momento em que ela precisaria utilizá-lo. “Como o garoto disse mesmo? Que não adiantaria eu tentar fugir ou gritar, seríamos só nós dois? Agora que paro para pensar, isso pareceu uma ameaça…”. As reais intenções dele não eram fáceis para ela reconhecer, não importava o quanto tentasse.

Excluindo a sua face e analisando o restante do corpo do garoto, percebeu que ele estava com a mão no bolso da calça de moletom, segurando algo firmemente. “Meu Deus, ele estava com uma arma esse tempo todo, tenho certeza!”. Apenas um leve indício de que ele a atacaria já seria o suficiente para ela revidar.

Assim como antes, o garoto mexeu um pouco a sua perna, encostando na dela. “Isso não foi um espasmo, ele vai me atacar! Tenho que agir antes que seja tarde demais”.

Sem pensar duas vezes, Cecília foi para cima do garoto. “Eu sabia que esse dia chegaria. Vou dar um bom uso para essa lâmina. Se eu acertar o pescoço, ele não vai conseguir revidar a tempo”. O pobre rapaz mal teve tempo de abrir os olhos. Em um momento, estava sonhando, no outro dormiria para sempre. Tentou gritar, mas como ele mesmo disse anteriormente, ninguém iria escutá-lo. Engasgando com o sangue, quase nenhum som saiu de sua garganta.

Com a força que lhe restava, puxou do bolso o que segurava: a chave de sua casa. Lutando contra aquela senhora, tentou atacar o seu rosto. Tomada pelo medo, ela se tornara muito mais forte do que imaginava.

Aquilo enfureceu ainda mais Cecília. “Como ele ousa tentar me machucar e colocar defeitos no rosto de uma dama?”. Forçando o braço do rapaz novamente para baixo, ameaçou esfaquear também a sua mão, para que não pudesse mais mexê-la.

Neste movimento, acabou vendo mais do que desejava: o seu reflexo na lâmina. Aquela que, a essa altura, já estava manchada de sangue e suor, escorregando de sua mão a cada investida. Porém, naquele momento, pareceu estar completamente limpa, permitindo que a senhora se lembrasse que não conseguia entender sequer a si mesma.

— Por quê? — perguntava Cecília a si mesma, não esperando respostas — Por que isso tinha que acontecer comigo?

“Chega, já me cansei disso. Estou há meses sem enxergar, mas hoje verei a cara zangada desse moleque. Todos vão entender o quanto ele é ameaçador”. Ele já estava inconsciente devido a perda de sangue, então não foi trabalhoso realizar a sua obra final. Com as pernas, segurava os braços do garoto, apenas por garantia, e com a lâmina, desenhava em seu rosto.

Linhas diagonais acima de onde estariam os olhos davam a impressão de uma testa franzida. Com cortes nas laterais dos lábios pôde dar um ar mais tenebroso ao rapaz. Logo, a sua face estava completamente cheia de sangue, mas o que importava era o que ela via, não os outros.

— Agora eu vejo! — ria Cecília descontroladamente.

Distraída em seu próprio universo, demorou um pouco mais para notar a porta se abrindo nas suas costas.

— Ah, finalmente — disse ao se virar de olhos ainda fechados, respirando fundo a nova corrente de ar que chegava até as suas narinas.

A visão que as pessoas do lado de fora tiveram é difícil de se descrever. Uma senhora com vestido florido, echarpe e salto, que seria tida como elegante, teve a sua imagem completamente distorcida. Até mesmo as suas pálpebras, que começavam a se abrir, estavam manchadas de sangue. Segurando a sua bolsa e guardando lentamente um objeto, parecia deslocada do cenário em que se encontrava.

— Gustavo? Você esqueceu a sua mochila, querido. Sabia que você devia estar voltando, mas notei o elevador parado e chamei o zelador para ajudar — uma voz feminina foi ouvida, se aproximando pelo corredor.

Cecília estava pronta para sair daquele lugar. “Mesmo se eu estiver no andar errado, eu vou de escada, me recuso a ficar presa novamente”. Porém, o seu caminho foi bloqueado pelo homem alto que estava em frente a porta. Estático, ele olhava para um canto específico do elevador, de onde o sangue escorria.

— Ei, será que você pode me dar licença? Eu estou tentando sair daqui, se não percebeu.

A reclamação de Cecília foi interrompida pela mulher que agora aparecia ao lado dele. Obviamente, a senhora não olharia para o rosto dela, mas começou a analisar toda a sua vestimenta. A primeira coisa que notou foi a roupa brega e sem graça que utilizava, calça jeans e camiseta. Depois, a mochila que carregava, sem nenhuma harmonização, não sendo ao menos de uma cor complementar.

Nela, conseguiu ver alguns livros e cadernos escolares. “Estranho, esse corpo não é de uma adolescente, parece uma mulher mais velha. Bem, devo ter me enganado, então”. Subindo mais o olhar, encontrou um colar com uma inscrição que lhe chamou a atenção.

“Rebecca”. Idêntico ao que ela havia enviado para a sua filha para ajudar a reconhecê-la depois do diagnóstico. “Será possível que…?”. Puxou a sua echarpe e a cheirou. “Isso não parece álcool… É algo mais como… Energético?”

— Não, não, não… Isso não! — Rebecca se ajoelhou, berrou e chorou, mas nada poderia mudar aquele destino.


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