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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Por que Shirley Jackson é leitura obrigatória para os fãs de horror

Uma das mais talentosas escritoras de horror tem obra relançada e vai virar série da Netflix



Shirley Hardie Jackson em 1951 (Divulgação)

Começamos com a confissão de um erro imperdoável. Em artigo publicado aqui na GALILEU, listamos cinco grandes autoras de horror que devem ser sempre lidas e relidas: Clara Reeve, Ann Radcliffe, Mary Shelley, Flannery O’Connor (que ficou conhecida em outras searas literárias, mas que produziu, sim, horror da melhor qualidade) e Anne Rice.

Acontece que, ao redigir o texto, deixamos de lado uma das mais talentosas escritoras de horror dos tempos recentes: a norte-americana Shirley Jackson.


Em nossa defesa, afirmamos que, na época em que o artigo foi redigido, ainda não existia a edição do selo Suma de Letras para A Assombração da Casa da Colina ("The Haunting of Hill House"), quinto romance de Jackson publicado originalmente em 1959. A única versão nacional anterior era a da editora Francisco Alves, do começo dos anos 1980.


Mesmo assim, não se justifica o nosso desconhecimento da autora, que, muito celebrada nos EUA (seus livros são leitura obrigatória em várias escolas por lá), vem sendo (re)descoberta lá e além. Inclusive, a Netflix já anunciou a série de A Assombração da Casa da Colina para este ano.


Virginia Werewoolf


Redescobrimento mais do que merecido, a nosso ver. É literalmente assombrosa a capacidade com que Shirley Jackson transita do território do mundano para aquele do inquietante. Após uma simples vírgula, tudo muda para pior e o nosso arrepio torna-se inevitável.


São inúmeros os recursos retóricos da autora, que explora como poucos a humanidade, a sensibilidade e a psicologia de suas personagens, frequentemente frágeis. Não à toa, de acordo com a biógrafa Ruth Franklin, Jackson, que nasceu em 1916 e faleceu em 1965, chegou a ser chamada de “Virginia Werewoolf” (algo como “Virginia Lobisomem”) em sua época.  


A comparação tem lastro. No romance A Assombração da Casa da Colina — em que quatro pessoas reúnem-se em uma mansão para investigar fenômenos sobrenaturais —, a narração em terceira pessoa mergulha com frequência na mente de Eleanor, a personagem na qual a narrativa se concentra.


A imersão psicológica é ora delicada, ora brutal, em movimentos vertiginosos, que por vezes lembram aqueles de Woolf, referência do modernismo e reconhecida como pioneira na exploração da psique de suas personagens.


Com Shirley Jackson, essa exploração expande os efeitos do horror, pois acentua a ambiguidade do relato. Recursos retóricos usados até a exaustão em toda a história da literatura, os confrontos “realidade X delírio” e “realidade X sonho” são eximiamente manuseados pela autora.


Um despertar na escuridão


Encontramos um exemplo desse procedimento naquela que talvez seja a passagem mais assustadora de A Assombração da Casa da Colina: o capítulo em que Eleanor desperta no meio da noite por conta de barulhos.


Ao longo de todo o trecho, ela aperta a mão de Theodora, a amiga que dormia na cama ao lado e que também despertara com os ruídos. Ambas escutam “o som baixinho, constante, [que] não parava nunca, a voz às vezes se levantando para enfatizar uma palavra murmurada, de vez em quando se reduzindo a uma respiração, sem nunca parar”.


Neste momento, somos expostos a uma verdadeira escalada de tensão. Uma após a outra, Jackson vai empilhando sutilezas sonoras e táteis no breu, de modo que nos vemos a sós com os sentidos, as especulações e o pavor de Eleanor. O trecho remete a O poço e o pêndulo, um dos contos mais conhecidos de Edgar Allan Poe, em que uma vítima da inquisição adivinha, no escuro e aos poucos, os locais em que está e as torturas a que é submetida.


Eleanor e sua amiga também são vítimas, mas não sabemos exatamente do quê. Há uma subtrama, uma explicação para o possível assombro da casa, mas nada é claro ou explícito. E, de incerteza em incerteza, sem jamais sabermos o que de fato ocorre, chegamos ao final do capítulo com uma reviravolta nada menos do que arrepiante. 


Ecos de gigantes


Além de Woolf e Poe, outros mestres visitam-nos ao longo da leitura de Shirley Jackson. Diante de tal trabalho com a hesitação, é impossível não pensarmos no norte-americano naturalizado inglês Henry James. Seu A volta do parafuso ("The Turn of the Screw", 1898) estabeleceu paradigmas de suspense e de ambiguidade narrativa que até hoje são seguidos de perto.


Mas os trunfos de Jackson não se restringem à investigação dos interiores de suas personagens; os espaços exteriores também assumem papel central em suas obras. De acordo com o que afirma a estudiosa Dirce Waltrick do Amarante nesta matéria, em um ensaio intitulado Os Fantasmas de Loiret, a autora, que era filha e neta de arquitetos, afirmou adorar casas — “particularmente casas velhas, grandes e luxuosas”.


O gótico revisitado


As construções lúgubres e apartadas também atraíam Shirley Jackson. Particularmente aquela cuja foto o marido mostrou a ela, “uma casa feia, cheia de ângulos todos errados”, conforme relatado no mesmo ensaio. Talvez tenha sido essa a inspiração para a casa do título, a verdadeira protagonista da trama. Pois a Casa da Colina é a personagem maior, controlando aqueles em seu interior como uma titereira enlouquecida.


Com efeito: é “uma casa desprovida de sanidade”, de desenho absolutamente confuso, disposição labiríntica e medidas “levemente erradas” (H.P. Lovecraft brindaria a essa formulação), degraus sutilmente desnivelados, vãos de porta “um bocadinho fora de eixo”, entre outros sutis desatinos.


No melhor estilo da narrativa gótica, portas fecham-se sozinhas, sons inexplicáveis se fazem ouvir, temperaturas despencam em pontos específicos da casa e, claro, fantasmas pairam por toda ela. Sobretudo o de Hugh Crain, o responsável pela construção e, aparentemente, pela tragédia que a marcou.


A propósito, o trecho em que conhecemos o livro que ele criou e relegou para a filha mais velha, contendo uma interpretação muito particular de religião, é uma aula magna da sugestão que conduz ao horror.


Efeitos do real e do irreal


A verossimilhança do relato é outro ponto alto. A história é repleta dos “efeitos do real” de que falou o crítico e filósofo francês Roland Barthes, que fortalecem o pacto ficcional com o leitor. Jackson consegue nos convencer da verdade de suas personagens, envolvendo-nos em suas motivações, para então cercá-los — e a nós — com os efeitos do irreal, ou do sobrenatural. 


Enfim, poderíamos listar uma série de outras qualidades de A Assombração da Casa da Colina — como a ausência de explicação que estimula a nossa co-autoria, personagens menores mas muito inquietantes (como a Sra. Dudley), ou mesmo o humor sutil de algumas passagens.


Mas o espaço é limitado, não podemos abusar. Então, se iniciamos com a admissão de um erro, encerramos com uma recomendação veemente: leiam Shirley Jackson. É a melhor forma de nos redimirmos do equívoco.

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