Muito se fala de como a realidade vem superando a ficção. Todos os dias surgem notícias que poderiam humilhar o mais inventivo dos escritores e das escritoras – exemplos recentes são a mulher que levou o tio moribundo ou já morto para assinar um empréstimo e o motociclista atropelado por uma kombi em chamas (que saiu ileso). Duas provas de que, em termos literários ou artísticos no geral, a representação exata já não é o suficiente para dar conta da vida em um mundo cada vez mais absurdo.
E se falamos de representação, falamos de mímese. Isto é, de um conceito fundamental da literatura, a imitação da natureza e de suas aparências. Está na Poética de Aristóteles, a pedra angular da criação poética (e, em consequência, literária) no ocidente. Durante séculos, a arte mimética teve o compromisso de reproduzir, espelhar o mundo que nos cerca, por meio de padrões acadêmicos que deveriam ser obedecidos – um mero desvio condenaria o livro, o quadro, a escultura ou qualquer obra de outra linguagem à marginalidade. Estaria aquém da compreensão de arte.
Na literatura, essa perspectiva resulta em movimentos como o naturalismo ou o realismo, cujos compromissos se estabelecem com objetos específicos: a humanidade e o determinismo biológico, a vida em sociedade (privada ou pública), as pessoas e suas diferentes facetas dentro desse contexto. No romantismo, marcado pela subjetividade, a representação é filtrada por emoções e sentimentos – mas ainda assim se trata de uma mirada pessoal, de um sujeito, ao mundo, sempre conforme esse sujeito o conhece e sente.
O triunfo das histórias não miméticas
Às margens do cânone literário, temos as chamadas narrativas não miméticas: aquelas que recusam a representação tradicional, objetiva. E o fazem por métodos diferentes, seja confrontando a realidade com o impossível, imaginando mundos mágicos regidos por leis diferentes ou especulando intensamente a partir de avanços científicos. Estamos falando de literatura fantástica, fantasia, ficção científica e horror, gêneros por muito tempo considerados menores por serem escapistas – justamente pela recusa de uma representação imediata do mundo ao redor.
Porém, nada como um dia após o outro. Movimentos recentes comprovam a força desses gêneros – e força crítica, pois populares eles sempre foram. O chamado gótico latino-americano, constituído por autoras essencialmente não miméticas, é um exemplo. Samanta Schweblin, Mariana Enriquez, Giovanna Rivero, Silvia Moreno-Garcia e Dolores Reyes, entre outras e outros, percorrem caminhos alheios à representação tradicional, e por isso chegam mais perto do âmago deste estranho mundo que habitamos.
Do outro lado do planeta também nos chegam autoras que driblam as estratégias narrativas convencionais. As japonesas Aoko Matsuda, com Onde vivem as monstras (Gutenberg) – coletânea de contos de fantasmas numa perspectiva feminista –, e Sayaka Murata, com o romance Terráqueos (Estação Liberdade) – um livro alienígena tanto na forma quanto no enredo; e a sul-coreana Bora Chung, que estreou no Brasil com a coletânea Coelho maldito (Alfaguara), traduzido Hyo Jeong Sung.
Um verdadeiro banquete
Olhemos com cuidado para o Coelho maldito de Chung. O livro chegou por aqui impulsionado pelo hype – foi finalista dos prestigiados International Booker Prize, da Inglaterra, e do National Book Award para livros traduzidos, nos EUA. De maneira objetiva, e para quem gosta de saborear histórias que renegam o realismo, os dez contos do livro são um banquete. Há pratos para todos os gostos: ficção científica (“Adeus, meu amor”), fantasia (“O senhor do vento e da areia”), realismo mágico (“A armadilha”), horror (“Coelho maldito”, “A cabeça”, “Menorreia” e “Dedos gélidos”) e fantástico (“Lar, doce lar”).
A maioria dos contos conta duas histórias, como ensinou o argentino Ricardo Piglia. A primeira está nos enredos marcados pelos gêneros não miméticos, com predomínio de cenas repulsivas, arrepiantes. Já na história por trás da história, estão as reflexões sobre “os horrores e as crueldades do patriarcado e da sociedade capitalista”, como pretende a apresentação do livro, assim o filiando à corrente atual de obras fantásticas e de horror.
No conto-título “Coelho maldito”, um objeto mágico se interpõe na disputa entre duas fabricantes de bebida – sendo que uma delas sabota a outra até levá-la à falência. Em “A armadilha”, o mais esquisito do conjunto, um pai ganancioso sangra primeiro uma raposa mágica e depois o próprio filho para obter uma fonte de ouro contínua. Em “Lar, doce lar”, uma mulher é enganada e explorada pelo marido em diferentes níveis, e conta com um auxílio sobrenatural para revidar.
Outros textos, porém, não vão muito além da “primeira história” de Piglia, resultando apenas em experimentos imaginativos. Seria um problema maior se para Chung não fosse tão fácil conceber imagens marcantes – como o parto grotesco de “Menorreia” ou o barco navegando no ar sob o sol do deserto em “O senhor do vento e da areia”.
Fria e impetuosa
Além de se esquivarem do realismo, os contos são unidos por outros fios. O principal é a neutralidade da prosa de Chung – autora já experimentada, com três coletâneas e três romances publicados. Seu estilo se mostra no geral distante, não raro fria. Quase nenhuma personagem tem nome – acompanhamos “a mulher”, “o marido”, “os vizinhos”, “o inquilino”, “a criança”; e a narração progride por meio da descrição de ações, sem grandes imersões psicológicas.
Têm, portanto, a cadência e o desenvolvimento dos contos de fadas, porém com pouquíssimas chances de um final feliz. Isso funciona na maior parte das vezes, mas em um ou outro momento sentimos falta de variações na voz narrativa – já que as próprias ideias que sustentam os contos são tão distintas.
Por outro lado, a escrita “distante” rende uma das maiores qualidades de Bora Chung: a impetuosidade. A maioria dos contos é narrada em terceira pessoa e, afastada de suas personagens (quase sempre mulheres), a autora pode maltratá-las à vontade, mas sem prescindir de uma construção minuciosa, que desperta nossa empatia.
Em “A cabeça”, uma mulher é atormentada por uma cabeça surgida na privada: feita de suas secreções, a coisa reivindica sua maternidade, e isso é levado aos mais abjetos extremos. O mesmo sucede em “Dedos gélidos”, em que a protagonista vaga perdida e apavorada em meio à escuridão, só para descobrir que o pior está por vir.
Ainda assim, a impetuosidade pode ser excessiva. Como em “Cicatriz”, conto longo demais sobre um menino vampirizado por uma estranha criatura que, quando adulto, se transforma em um lutador clandestino com poderes mágicos, sendo explorado por seus “chefes”. A essa altura, já compreendemos as traquitanas de Chung, que neste conto a aplica com mais ênfase.
Porém, a redenção vem com "Reencontro", o último e melhor conto do livro, sobre amores estranhos e fantasmas de pessoas vivas. E que, pela força imaginativa e pela sensibilidade de Chung, permanece na gente por mais tempo do que um cão-robô-lança-chamas como aquele da empresa americana Throwflame que viralizou nas últimas semanas.
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