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"O fantasma de Canterville": a conversão de horror em humor por Oscar Wilde


Ilustração de Wallace Goldsmith sobre O Fantasma de Canterville, de Oscar Wilde (Foto: Wallace Goldsmith/Wikimedia Commons)

O britânico Oscar Wilde foi, definitivamente, um homem de seu tempo. Figurando como o mais oitocentista dos autores, acabou por associar-se a tudo o que o século 19 teve de maravilhoso e terrível, de glorioso e infame, de belo e disforme, de sofisticado e de grosseiro. Todas essas contradições parecem, de alguma forma, relacionar-se à vida ou à obra do escritor irlandês nascido em Dublin, em 1854; a ponto de não ser fácil distinguir onde termina uma e começa a outra.


Wilde também era perfeitamente consciente do efeito que produzia na sociedade a que pertencia — bem à moda de seu personagem Lord Henry Wotton, de O retrato de Dorian Gray (1890). Por mais de uma década, encantou e fascinou a Inglaterra vitoriana, até protagonizar o maior escândalo do final do século 19 e ser conduzido à prisão. Antes de cair, no entanto, chegou à estratosfera. Ninguém atraiu para si mesmo, e para sua obra, tantas luzes, em tantos palcos diferentes.


Dramaturgo reconhecido como um dos renovadores da comédia de costumes, poeta de grande sensibilidade, ensaísta perspicaz, contista consagrado pelo estilo e pela riqueza dos temas, romancista celebrado, esteta singular em tempos nos quais a estética predominava. Wilde representou, para sua própria época, a epítome do “artista que fazia da vida a maior obra de arte”, como ele próprio afirmou seguidas vezes na ficção, bem como nas muitas cartas que escreveu.


Tal gênio resultou em textos tão ricos quanto variados. Governada pela lucidez, pelo humor tão ácido quanto refinado e por uma impressionante capacidade de observação, a obra wildeana apresenta-se como um mosaico de espelhos, os quais refletem não apenas aspectos fundamentais do século e da sociedade em que o autor viveu, mas também, e sobretudo, de sua própria personalidade. O retrato de Dorian Gray é o maior exemplo disso.


Sai o espanto, entra o riso


Já a noveleta O Fantasma de Canterville pertence à categoria das paródias. Ou seja, Wilde se apropria de elementos clássicos da literatura gótica (e também de horror) para imprimir comicidade a eles, por meio de recursos narrativos como o exagero e a ironia. O procedimento se tornou muito frequente no cinema de horror — aqui no Brasil, deu origem ao termo “terrir”, cujo maior expoente é o cineasta carioca Ivan Cardoso, de As sete vampiras e O segredo da múmia.


Publicado originalmente três anos antes de O retrato de Dorian Gray, em 1887, O Fantasma de Canterville traz a história de um espectro britânico incapaz de assustar uma família norte-americana. Utilizando convenções das histórias de fantasma — tão populares na época —, Wilde as subverte, e assim converte o espanto em riso.


Mas a análise não se esgota aí. A atmosfera de encantamento e a ausência de rupturas entre a realidade e o sobrenatural aproximam a noveleta do conto maravilhoso. Além disso, a infeliz trajetória do espectro acaba por acrescentar tonalidades de tragédia ao quadro. Trata-se, ainda, de uma “divertida crônica sobre as atribulações do Fantasma da Propriedade de Canterville quando seus corredores ancestrais se tornam o lar do Ministro Americano para a Corte de St. James”, conforme o próprio Wilde afirma em uma espécie de subtítulo para o texto.


Para nós, leitoras e leitores, resta uma certeza: o núcleo de O Fantasma de Canterville é o confronto entre o novo e o velho mundos, exposto em tons cômicos. O fantasma representa elementos essencialmente britânicos (e, em menor medida, da Europa ocidental), como o tradicionalismo, a nobreza, a ligação com tempos definitivamente passados, a apreciação da arte. Já a família Otis simboliza características que até hoje soam tipicamente norte-americanas: é pragmática, materialista, cética, industrializada.


Isso fica claro logo no início, quando o patriarca e ministro dos Estados Unidos Hiram B. Otis, ao ouvir falar sobre o “espírito dos Canterville” residente na mansão que estava prestes a comprar, diz: “Pelo valor combinado, levarei a mobília e o fantasma. Venho de um país moderno, onde temos tudo o que o dinheiro pode comprar; e com os nossos jovens cheios de energia sacudindo o Velho Mundo e levando embora seus melhores atores e suas prima-donnas, entendo que, se houvesse algo como um fantasma na Europa, nós rapidamente o colocaríamos em um de nossos museus públicos, ou como uma atração ambulante, talvez.”


Um fantasma apavorado


Uma das marcas das paródias é o exagero, e Wilde carrega nas tintas ao caracterizar as personagens da noveleta. A franqueza, que na fala do ministro beira o caricaturesco, mantém-se por todo o relato. Tanto o patriarca Otis quanto a esposa, a senhora Otis, o filho primogênito Washington e os mais novos, os gêmeos apelidados de “Estrelas e Listras”, personificam de forma quase estereotipada aqueles traços reconhecidamente estadunidenses.


À sua maneira, cada um adota uma estratégia para enfrentar e ridicularizar o fantasma. Há quem não dê a mínima (no caso do ministro) para ele, e há quem faça molecagens (no caso dos gêmeos). Mas nenhum dos Otis demonstra o mais leve temor diante da aparição de aspecto terrível, cujos olhos eram “vermelhos como carvão em brasa; longos cabelos grisalhos tombavam sobre os ombros em espirais emaranhadas; as vestes, que eram de um talho antigo, estavam puídas e esfarrapadas, e dos punhos e dos tornozelos pendiam pesadas manilhas e grilhões enferrujados.”


De nada adiantam os truques e disfarces do fantasma, que no passado havia matado ou enlouquecido muitas pessoas; ele é sempre recebido com indiferença ou escárnio. Torna-se um vilão que não assusta, perdendo assim o sentido de sua existência etérea. Com efeito, diante dos seguidos fracassos, resta a ele perambular atônito pela casa nas horas mortas da madrugada, sempre fugindo dos gêmeos diabólicos. Torna-se um fantasma apavorado.


Humanidade revelada


É curioso observar, nesse procedimento, uma nova subversão da narrativa gótica: ao retirar de um espectro sua essência assustadora, Wilde anula uma das mais salientes características de tais histórias — a presença ameaçadora do passado.

Entretanto, nem todos os Otis são indiferentes ao pobre fantasma. Virginia, a filha do meio, é a exceção. Livre, suave e “adorável como uma corça”, ela passa os dias a cavalgar, geralmente na companhia de seu pretendente, o duquesinho de Cheshire. É a única que não se envolve nos estratagemas contra o fantasma, e acaba assumindo papel central na conclusão da história, em que o tom cômico dá lugar a um comovente lirismo.


A jovem Virginia torna-se, assim, a ponte entre os dois mundos, velho e novo. Cabe a ela devolver ao fantasma a sua essência em um desfecho carregado de melancolia, bastante apropriado para o tom de uma ghost story. Revela-se aí outra das incontáveis faces da noveleta (e da obra) de Wilde: a sensibilidade que, assim como o riso e o espanto, nos torna humanos.

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