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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Mitologia, sátira e horror: o que esperar de “Medusa”, novo filme nacional


A atriz Mari Oliveira, protagonista do filme (divulgação)

A história é tão antiga quanto o mundo. Uma bela jovem, empregada em uma casa comandada por uma mulher rigorosa e casta, atrai a atenção de um homem. Seduzida por ele, torna-se sua amante. A dona da casa os descobre e, durante um ataque de fúria, parte para cima da bela mulher, desfigurando-a. Pune-a por considerá-la impura, devassa.

Tragédias assim podem estar acontecendo neste momento. Mas essa em particular tem mais de 2 mil anos. A bela mulher era uma sacerdotisa do templo de Atena. O homem, Poseidon, deus grego dos mares e dos rios. A dona da casa era ninguém menos do que a própria Atena, a deusa virgem, considerada a preferida de Zeus. E a criatura monstruosa em que se transformou a sacerdotisa, a Medusa. Sua aparência ficou tão assustadora que qualquer pessoa que a olhasse viraria pedra. Essa é uma das versões mais conhecidas do mito. E foi a partir dela que a diretora e roteirista carioca Anita Rocha da Silveira realizou o longa Medusa, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (16).

De acordo com a própria cineasta, o filme – que vem se dando bem em festivais nacionais e internacionais –, nasceu de sua observação da ala conservadora da sociedade brasileira nos últimos anos, que passou a adotar o trinômio “bela, recatada e do lar” como uma espécie de lema. Lembrando que esse foi o título de uma matéria de 2016 da revista Veja sobre a então primeira-dama Marcela Temer. A partir daí, houve uma cisão em partes da sociedade. Surgiram grupos que ironizavam e repudiavam o modelo “Marcela Temer” (consolidado na sequência por Michelle Bolsonaro) e grupos que o defendiam com unhas e dentes. Todas essas observações levaram Silveira a ponderar sobre mulheres controlando umas às outras: “Crescemos com medo de ceder aos nossos impulsos, e até de sermos consideradas ‘histéricas’", diz a diretora, em comunicado à imprensa.

No filme, o controle de mulheres sobre mulheres é literal. As primeiras cenas apresentam uma moça caminhando sozinha por uma rua deserta, à noite. Um grupo de jovens mascaradas surge atrás dela e passa a persegui-la, até a encurralar e espancar. Em certo momento, obrigam-na a confessar ser uma pecadora e a dizer que aceita Jesus. Influencer gospel As “justiceiras” são as Preciosas do Altar, o conjunto musical de uma igreja evangélica. O grupo é liderado pela influenciadora gospel Michele (Lara Tremouroux), uma bonequinha de porcelana loira, e sua melhor amiga, a enfermeira Mari (Mari Oliveira), protagonista do filme. Ambas são paranóicas por controle: vigiam sem cessar a vida de suas companheiras de palco, vigiam uma à outra e a si próprias, cuidando para se manterem nos rigorosos preceitos professados pelo jovem pastor Guilherme (Thiago Fragoso). Essa vigilância ocorre sobretudo na aparência: Michele usa suas redes para dar dicas de como a jovem cristã deve se vestir, se maquiar, se portar e até como tirar uma selfie sem ofender o Senhor. As Preciosas também vigiam, e punem, as jovens que consideram “messalinas”. O termo, que acabou se tornando sinônimo de prostituta, vem do nome de Valéria Messalina, a terceira esposa do imperador romano Cláudio que tinha fama de ser promíscua.

Os espancamentos têm por inspiração um acontecimento quase lendário: havia, na cidade das moças (não especificada no filme), uma modelo chamada Melissa (Bruna Linzmeyer), “a maior devassa que já existiu”, segundo Michele.

Certa noite, durante uma festa, uma figura de máscara branca se aproximou de Melissa segurando um isqueiro e um copo com querosene, e botou fogo em seu rosto. Depois disso, a modelo desapareceu. E se tornou uma obsessão de Michele e Mari, que ficam imaginando como estaria seu rosto hoje. Fissuras na amizade A propósito, é uma “rachadura” na aparência de Mari que começa a afastá-la da amiga, das Preciosas e da vida ilibada que leva. Após se cortar e ficar com uma cicatriz no rosto, ela é demitida pelo cirurgião plástico com que trabalha e arranja um emprego em uma clínica de pacientes em coma. Mari está convencida de que Melissa está no lugar, e se compromete com Michele a procurá-la. Esse é o ponto de inflexão na história. A partir daqui, Medusa avança com mais firmeza no terreno da mitologia. A começar pela clínica: longe da urbanização e próxima da mata, portanto da natureza, o lugar aflora o lado dionisíaco de Mari, que se envolve com o enfermeiro Lucas (Felipe Frazão).

O espaço também se assemelha a um labirinto e é liderado pela enigmática e sensual Karen (Joana Medeiros), uma das personagens mais interessantes do filme – não por acaso, em certo momento a vemos vestindo uma máscara de touro. Quando o expediente termina, Karen comanda noitadas de delírio e sexo no local.

E no centro de tudo, jaz a medúsica Melissa, cuja identidade vai se confundindo com a da figura mascarada que a atacou. Esse universo fantástico e estranho representado pela clínica de Medusa dialoga com o corpo de bombeiros de Titane (2021), da francesa Julia Ducournau, no qual a protagonista Alexia (Agathe Rousselle) também sofre sua transformação. A catarse no centro de tudo A transição de Mari e a mudança de tonalidade da história protegem Medusa de julgamentos rasos. Se de início acompanhamos (ora rindo, ora horrorizados) a vida oprimida e opressora de jovens ultraconservadoras no Brasil contemporâneo, o que testemunhamos a seguir são as consequências desse sufocamento – que deixa de ser metafórico no desfecho inesperado e catártico do filme. A catarse, a propósito, está na gênese do trabalho de Anita Rocha da Silveira. O discurso é o do horror, no qual se conjugam a violência, a atmosfera sinistra e as monstruosidades sempre à espreita.

Mas também há espaço para a sátira e a fantasia. “O filme foi, para mim, um modo de lidar com uma série de notícias cada vez piores e com o avanço da extrema direita. Por isso, foi fundamental dar uma forma ficcional a todas essas inspirações reais, com espaço para o fantástico e o humor”, afirma a diretora, em comunicado à imprensa. Com efeito, ao mesmo tempo em que assombra por refletir tempos sinistros como o atual, Medusa também pode ser leve. Isso ocorre graças às cores e texturas realçadas pela fotografia de João Atala, à deliciosa trilha sonora que dá ares de musical para o filme e, claro, ao fato de podermos assisti-lo depois das eleições de 2022. Ainda que histórias semelhantes à da sacerdotisa de Atena ainda se repitam todos os dias.

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