Lembro-me como se fosse hoje de um dos momentos mais assustadores da minha infância. Eu tinha uns nove anos e estudava em um colégio no qual as aulas iam das 8h às 16h20 – na época, falava-se de “semi-internato”. Assim que saía, esperava pela minha mãe, que ia me buscar. Ela costumava chegar por volta das 17h, nunca mais do que isso. Numa tarde, porém, foi diferente. Esperei, e esperei, e esperei. Só por volta das 19h30 foi que ela apareceu. Se não bastasse minha inquietação pelo atraso, assim que entrei no carro, percebi que mamãe estava diferente. Meio seca, um pouco aérea, não sabia bem; mas diferente. Nem de longe a pessoa carinhosa e divertida que costumava ser.
Depois, descobri que ela havia feito um exame (o que explicaria o atraso), e os medicamentos a deixaram daquele jeito, meio narcotizada. Mas nunca me esquecerei do olhar fixo dela no retrovisor, do tom de voz mais grave, das frases curtas, cortantes. Nada me tira da cabeça que, ao menos naquela tarde, minha mãe não era exatamente minha mãe. Tão forte foi a experiência que a transformei em um conto chamado “Mamãe não está” – foi incluído na coletânea Horror adentro, publicada em 2016.
Inversão elementar
Hoje, sei bem que não me encontro sozinho nesta sinistra zona da memória. Na verdade, acredito que ninguém esteja imune à figura maternal que, de súbito, se torna monstruosa. É uma inversão elementar, a conversão em ameaça de tudo o que mais associamos a segurança, amor e acolhimento. Por isso, mães assustadoras sempre foram um tópico recorrente no horror, e nada melhor do que o mês de maio para nos lembrarmos disso.
Muitas vezes, a fonte de arrepios não é exatamente a mãe, mas a relação entre mães e filhos. Um dos exemplos mais famosos vem de Psicose – tanto o livro de Robert Bloch quanto a adaptação de Alfred Hitchcock –, em que Norman Bates é acossado pela mãe dominadora, e as consequências são bem conhecidas. Ou mesmo a mãe fanática e superprotetora de Carrie White, do primeiro romance de Stephen King. A propósito, são incontáveis os casos de assassinos seriais e psicopatas que têm, na relação problemática com as mães, a origem de todo o mal.
Mas este é assunto para outra coluna. Aqui, trataremos não das mães cujos comportamentos e personalidades transformam filhos em monstros, mas daquelas que são, elas mesmas, perigosas – tanto para a própria prole quanto para o mundo ao redor. O tópico até recebeu um nome “oficial”, maternidade monstruosa, e vem sendo objeto de pesquisa de um crescente número de estudiosos e estudiosas das letras e das narrativas audiovisuais.
Perigosa e impura
Vale lembrar que a associação entre mães e monstros é antiga, tanto quanto as ameaças vinculadas à própria feminilidade. No cerne da questão, as investigações sobre o tema apontam um possível denominador comum: a cosmovisão católica. Isso justificaria uma percepção negativa da mulher por ser responsável pela ruína do homem na Bíblia. E mais: considerada impura pelos líquidos que expele, a mulher foi acusada de, ao mesmo tempo, atrair e repelir, estando mais próxima à decrepitude da matéria – e, por isso, mais vinculada aos mistérios da morte.
Em História do medo no Ocidente, o historiador francês Jean Delumeau lembra que, na Idade Média, a mulher que menstruava era “ligada às lunações”. Tida como “perigosa e impura”, podia carregar diversos males; por isso, era preciso afastá-la do convívio social. A parturiente também carregava uma “impureza nociva”, e portanto devia ser apartada até que passasse por um rito purificador. São conhecidas as piores consequências deste medo primordial da mulher: as caças a feiticeiras, que se estenderam dos séculos 15 ao 18.
Contra o casamento
A literatura, é evidente, espelhou a ameaça de mães e mulheres no geral. Delumeau aponta uma feroz hostilidade ao feminino em obras como Miroir du mariage (Espelho do casamento, século 15), de Eustache Deschamps, que prega com veemência contra o casamento devido ao caráter traiçoeiro e ardiloso da mulher. Além deste livro, Delumeau lista uma série de outros títulos do início da Idade Moderna que repercutiram as ameaças representadas pelo “outro sexo”.
Passaram-se alguns séculos até que ficcionistas do gótico e do horror convertessem essas relações em narrativas do arrepio. A pesquisadora Josalba Fabiana dos Santos, da Universidade Federal de Sergipe, aponta em Frankenstein (1818) um exemplo emblemático de como não a maternidade, mas o ato de criar pode ser monstruoso. Neste caso, a despeito da aparência aterrorizante da criatura, seria Viktor Frankenstein o verdadeiro monstro: movido por sua ambição de conceber um ser perfeito, torna-se pai e mãe, apenas para depois abandonar sua criação. De fato, nada mais monstruoso do que isso.
Thomas de Quincey e a mãe dos suspiros
Décadas depois do romance de Shelley, em 1845, o também inglês Thomas de Quincey publicou uma coletânea de ensaios intitulada Suspiria de Profundis (do latim, “suspiros das profundezas”), com textos a respeito de medos e perdas da experiência humana. Em um dos ensaios, “Levana and Our Ladies of Sorrow” (“Levana e Nossas Senhoras da Tristeza”), Quincey concebeu três companheiras para a deusa romana Levana: Mater Lachrymarum, a Mãe/Nossa Senhora das Lágrimas; Mater Suspiriorum, a Mãe/Nossa Senhora dos Suspiros; e Mater Tenabrarum, a Mãe/Nossa Senhora da Escuridão. Elas representam as penúrias humanas, agindo de formas diferentes, mas sempre em acordo.
Mencionamos esta obra porque dela derivam as sinistras entidades maternais dos dois filmes Suspiria – o de Dario Argento, de 1977, e a releitura livre de Luca Guadagnino, de 2018. Nestas obras de horror, a bailarina Susie Bannion chega a Berlim, em 1977, para estudar na Helena Markos Dance Academy, onde encontra mulheres frias e um ambiente estranho. Então, a moça percebe estar em um covento de bruxas que acreditam que Helena Markos é a encarnação da Mãe Suspiriorum, entidade sobrenatural por elas cultuada.
No cinema, a propósito, é recorrente a figura da mãe monstruosa. O filme austríaco Boa noite, mamãe (2014), de Veronika Franz e Severin Fiala, encena uma trama semelhante àquela que marcou minha infância. Após passar por uma cirurgia plástica, uma mulher volta para casa, para seus dois filhos gêmeos de nove anos, e começa a agir de maneira estranha e violenta com eles. Embora o filme contenha uma significativa reviravolta, é forte o impacto da transformação da mãe.
Assim como são fortes os impactos causados por Nola, personagem de Os filhos do medo (1979), de David Cronenberg – uma mulher devastada psicologicamente, que é submetida a tratamentos psiquiátricos não-ortodoxos e, em um útero externo, passa a gerar frutos dessas perturbações. Aliás, o filho de Cronenberg, Brandon, também concebeu uma mãe assustadora – ainda que acidentalmente – em Possessor, híbrido de ficção científica e horror lançado em 2020 que envolve implantes cerebrais, transferência de consciência e assassinatos de aluguel.
Um sacrifício monstruoso
No caso dos livros, outras personagens também são difíceis de se esquecer. Uma delas é a cabocla Umbelina, a protagonista do conto “Os porcos”, publicado em 1903 pela autora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). A jovem engravida do amante, filho de seu patrão. Ao saber disso, o rapaz a abandona, e Umbelina planeja uma vingança macabra: parir na porta da casa dele e, a seguir, matar o recém-nascido.
Aqui, a monstruosidade é consequência de uma sociedade patriarcal e violenta. Usada e abandonada pelo amante, além de vilipendiada pelo pai e pelas pessoas do vilarejo rural em que vive, a moça engendra uma vingança à altura, bestial, cruel e sangrenta. Mas as circunstâncias a obrigam a mudar de planos: enquanto caminha pelos ermos da região rumo à casa do homem que a deixou, ela passa a sofrer as dores do parto. E acredite: o desfecho do conto é ainda mais brutal que seu desenvolvimento.
E agora, tendo dito tudo isto, é tempo de desejar: feliz mês das mães!
Comments