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Mariana Enriquez: "Me interessa a ideia da história que volta como fantasma"



Mariana Enriquez (foto: Sebastian Freire)

A coletânea Os perigos de fumar na cama percorreu um longo caminho antes de chegar ao Brasil. Lançada na Argentina em 2009, a obra de Mariana Enriquez viu outros três livros posteriores aportarem por aqui: a coletânea As coisas que perdemos no fogo, de 2017, a novela de dark fantasy Este é o mar, de 2019, e o romance Nossa parte de noite, de 2021, todos pela editora Intrínseca. No exterior, o livro de 2009 — que foi a primeira incursão de Mariana Enriquez no formato de contos — foi traduzido para o inglês em 2021 e, no mesmo ano, foi finalista do prestigiado prêmio International Booker, do Reino Unido.


Enfim disponível nas livrarias brasileiras, Os perigos de fumar na cama constitui uma oportunidade dupla para leitoras e leitores de Enriquez: constatar que o conjunto de 12 contos segue impactante catorze anos depois, e testemunhar o tratamento inicial do estilo e dos temas que consagrariam a autora nas obras seguintes.


Um dos prazeres causados pela leitura da coletânea é o reconhecimento, nos contos de 2009, das marcas autorais que transformaram Enriquez no epicentro do terremoto que reconfigurou a literatura de horror na América Latina.


Terror da diferença


Uma dessas marcas é o assombro que nasce dos conflitos sociais. “Para a sociedade como um todo, o encontro com personagens marginalizados pode ser assustador — é o terror da diferença”, afirma Mariana Enriquez à coluna. “E especialmente nos nossos países, essa diferença é de classe. São os pobres que dão medo à classe média, e esse medo pode até causar catástrofes políticas.”


Em As coisas que perdemos no fogo, esse medo está presente em contos como "O menino sujo" e o lovecraftiano "Sob a água negra". Já em Os perigos de fumar na cama, o confronto é mais saliente no forte "O carrinho". Um homem em situação de rua surge em um bairro residencial de Buenos Aires, defeca na calçada e, ao ser escorraçado pelos moradores, abandona o carrinho de supermercado no qual trazia seus pertences.


A vizinhança descobre, da pior forma possível, que o carrinho está “assombrado”. “Existe uma estigmatização da miséria que funciona como uma espécie de condenação”, arremata a autora.


A memória do horror


Um tipo diferente de fricção social dá o tom em "Rambla triste", sobre jovens argentinos que enfrentam a gentrificação e o preconceito em uma Barcelona cada vez mais refratária a turistas e estrangeiros no geral. No conto, a própria cidade surge hostil, ameaçadora, com uma subtrama que traz outro tópico preferencial de Enriquez: o desaparecimento de pessoas e seus consequentes fantasmas.


“Me interessa muito a hauntologia, a ideia da história que volta como fantasma, ou a do espaço que conserva a memória do horror”, afirma ela, em alusão aos locus horribilis das histórias góticas. Na visão da autora argentina, o retorno do passado é mais assustador quando é transgeracional, tornando-se um “grande tema” para as histórias assustadoras — em especial quando se trata de escritores de sua época.


“Percebo que existe algo geracional nessa forma de entender o horror, que tem a ver com autores nascidos nos anos 1970, criados com Stephen King, as ditaduras e as crises econômicas” reflete ela, que em 2023 completou 50 anos. “Percebo um padrão com a política e a história.”


Nesse sentido, é famosa a abordagem horrorífica de Enriquez aos traumas da ditadura Argentina, como os desaparecimentos de pessoas. "A casa de Adela", conto de As coisas que perdemos no fogo, e trechos fantasmagóricos de Nossa parte de noite evidenciam esse tratamento.


Argentina em cena


Já em Os perigos de fumar na cama, os mortos que voltam são mais pessoais. O desenterro da anjinha, que abre o livro, trata de um bebê zumbi que acompanha a narradora e protagonista ao longo de toda sua vida, em um contexto de misticismo e superstição próprios do interior da Argentina.


O conto reúne duas preocupações centrais de Enriquez na época: a voz narrativa feminina e o horror regional. “Até então, eu tinha escrito dois romances com narradores masculinos [Bajar es lo peor e Como desaparecer completamente, inéditos no Brasil]. E estava buscando usar temas como bruxas, crianças zumbi, tábuas de ouija, horror corporal, mas carregados de um conteúdo local.”


A busca pessoal da autora acabou “contagiando” Os perigos de fumar na cama. As personagens e seus fantasmas parecem mais solitários do que em obras futuras de Enriquez. Além da narradora de "O desenterro da anjinha", Josefina, a protagonista de "O poço", se vê completamente sozinha ao lidar com medos banais que aos poucos a consomem; e Elina, de "O mirante", é uma jovem reclusa e traumatizada que se hospeda em um hotel assombrado, espécie de Overlook portenho.


Hoje, avaliada em retrospectiva, a coletânea de 2009 de fato representa um movimento para dentro, em comparação às obras seguintes: “Era o que eu precisava naquele momento, para depois poder olhar ao redor.”


A obsessão como portal para o horror


O voltar-se para si também revela outra marca autoral de Enriquez, a obsessão. Em sua ficção, o exemplo mais eloquente é o romance Este é o mar, com lendas do rock que se tornam seres mitológicos graças à obsessão e à devoção de seus fãs. Tema semelhante é o do conto "Carne", de Os perigos de fumar na cama, em que fãs do rockstar Santiago Espina levam sua obsessão pelo ídolo às raias mais extremas.


Em "A virgem da pedreira", a jovem Natalia é obcecada por Diego, e o ciúme a conduz a cometer um ato aterrador. No cronenbergiano "Onde está você, coração?", o melhor conto do livro, a narradora e protagonista é obcecada sexualmente por doenças cardíacas.


“Eu mesma sou muito obsessiva”, conta Enriquez, que acaba de lançar, na Argentina, o livro Porque demasiado no es suficiente ("Porque muito não é suficiente", em livre tradução), sobre sua paixão pela banda inglesa Suede. “E a obsessão pode ser um portal para o horror porque é enlouquecedora. Gosto de trabalhar com as distorções dos sentidos, e em especial com a obsessão, que pode produzir formas pouco convencionais de amor e desejo. Nesse sentido, abrem-se as portas do horror.”


No conjunto, Os perigos de fumar na cama revela uma autora já bem próxima de se tornar a potência do horror que hoje conhecemos. É um livro mais introspectivo do que As coisas que perdemos no fogo. À sua maneira, porém, reafirma o horror como o gênero que mais se aproxima da vida — solitária, exilada, perturbada, enlouquecida, devastada pelo trauma e pela obsessão; mas (ou exatamente por isso) vida, ainda assim.

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