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Foto do escritorOscar Nestarez

"Mais sombrio": Excessos tiram brilho de novo livro de contos de Stephen King


Fonte: divulgação

A piada é antiga: enquanto você lê esta primeira linha, Stephen King escreveu mais um livro. Tamanha é a capacidade produtiva do autor norte-americano que já se levantaram suspeitas sobre quem, ou o quê, de fato escreve tantas obras. Há quem defenda que seja um grupo de escritores a serviço do autor de O iluminado, à maneira do francês Alexandre Dumas — que tinha um escritório, literalmente, para cuidar de suas volumosas narrativas. Também tem gente que afirma se tratar de IA, ou de alguma tecnologia do tipo.


Exceto que se prove o contrário, porém, é o homem do Maine e mais ninguém o responsável pelos sessenta e tantos livros publicados desde meados da década de 1970 — de ficção apenas, que fique claro. Não constam na lista trabalhos como Dança macabra e Sobre a escrita, ou as incontáveis antologias de que King participou com algum conto. Nesta assombrosa bibliografia, o romance Carrie (1974) é o marco inicial; e o último título é a coletânea Mais sombrio, que teve lançamento mundial. Aqui no Brasil, saiu pela editora Suma.


E é mais um catatau: 528 páginas pelas quais se distribuem doze contos. Ou melhor, nove contos e três textos mais extensos, incluindo um romance curto, O sonho ruim de Danny Coughlin, e duas novelas, Dois fio da mãe talentosos e Cascavéis (a sequência do romance Cujo, de 1981). Estas três narrativas são inéditas, assim como os contos Os sonhadores e O homem das respostas. Os demais foram publicados em diferentes ocasiões, de 2020 para cá — não por acaso, são frequentes as alusões à pandemia de Covid-19.


Imaginação faminta demais


Completa o volume um breve posfácio escrito pelo próprio autor, no qual ele esclarece seus processos criativos atuais. King diz não entender porque as pessoas precisam de histórias, e tampouco porque ele, como tantos outros, precisa escrevê-las. Mas a motivação está clara: “a imaginação é faminta e precisa ser alimentada”. A questão é que, neste como em outros livros recentes, a fome do autor parece exceder a nossa.


Explico: tão voraz é a vontade de contar histórias de King que, na maioria dos contos do livro, ficamos com a impressão de que o prato servido é maior do que o necessário. Nos detalhes, nos diálogos, nas histórias em torno da história; enfim, na gordura. Que é necessária para manter o sabor e a textura da carne literária, claro, mas que precisa ser muito bem balanceada.


Antes de prosseguir, acho importante mencionar que, no âmbito da criação literária, considero King um prosador de primeira grandeza. A narração dele é magnética e me impressiona como ele consegue, muito rápido, nos colocar bem no centro dos universos ficcionais que cria.


Bastam alguns parágrafos iniciais para que nos vejamos exatamente onde ele quer que estejamos – quase sempre em algum lugar do Maine. Poucos parágrafos depois, já nos sentimos íntimos de seus narradores, na maioria das vezes intradiegéticos – ou seja, personagens que participam dos enredos, ou os protagonizam. É como se nós os conhecêssemos há tempos, reencontrando-os naquela determinada ocasião para ouvir seus causos. Isso é um trunfo.


Prosa afiada, mas de dois gumes


Acontece que, para estabelecer esse vínculo com o leitor e a leitora, King recorre muitas vezes à técnica de small talk, ou de conversa fiada, mesmo. Sempre há piadinhas, expressões idiomáticas e uma atenção aos detalhes que pode parecer excessiva, mas que tem o propósito de nos envolver. Como talentoso conversador, ele sabe que a ficção literária também é feita das sobras de nossas vivências e não só do que constitui de fato essas vivências.


Por exemplo: ao narrar a obsessão de uma mulher por seu escritor preferido, King vai nos encher de informações sobre a vida miúda dela. O que ela come, ao que assiste na TV, como é a estampa de suas cortinas, qual a sua estação do ano preferida. Acontece o mesmo quando ele nos conta sobre crianças e depois adultos que lidam com monstros da infância. A narração é repleta de minúcias que, no conjunto, insuflam mais vida e verdade às personagens, o que ele faz como poucos e poucas. Annie Wilkes (de Misery - Louca obsessão), Jack Torrance (de O iluminado) ou os protagonistas de It - A coisa que o digam.


O efeito colateral dessa técnica é uma dispersão do efeito do horror. Me refiro ao tom geral da narração. Peguemos o exemplo dos autores H.P. Lovecraft ou Mariana Enriquez: ambos compartilham de uma sisudez, de uma gravidade na prosa que acentua a sensação de catástrofe iminente, indispensável ao relato assustador. King também trabalha isso, que fique claro. Mas seus personagens parecem caminhar sorrindo para os braços do monstro ou da morte. Vão perecer na cadência do sarcasmo. Seus narradores não costumam resistir à tentação do alívio cômico, da brincadeira – que, sobretudo no horror, tem hora e lugar.


Muita história antes da história


Isso é perceptível em algumas narrativas de Mais sombrio. A novela Dois fio da mãe talentosos, por exemplo: é a história de dois amigos, um escritor e um artista plástico, que se tornaram famosos relativamente tarde, aos quarenta e tantos anos. É uma história de pacto diabólico com elementos de ficção científica. E é contada pelo filho de um dos “pactários”, o que permite a King esticar bastante a corda. Há muitos preâmbulos e desvios, muitos detalhes, e o que interessa só aparece após quarenta páginas. O protagonista, o escritor, é uma figura sarcástica, então a dispersão se dá por aí, também.


Outro relato que padece disso é a novela Cascavéis, sequência do romance Cujo. Na história, Vic Trenton vai passar uma temporada na casa de um amigo na Flórida, durante a pandemia de Covid. Ele está de luto pela morte da esposa, Donna (protagonista do romance de 1981), e é assombrado por fantasmas do passado. Aqui, a dispersão é pesada. Entre piadas, sacadinhas, detalhes e desvios da rota principal, a história me pareceu interminável. As 100 páginas de extensão se multiplicaram por dois ou três.


Não por acaso os melhores contos são os mais curtos, nos quais quase não há desvios. Por exemplo, O quinto passo: um sujeito aposentado lê seu jornal no banco de um parque e é abordado por um homem com um estranho pedido relacionado à sua recuperação do alcoolismo. Nove páginas que progridem lindamente e trazem um desfecho impressionante.

Ou Willie esquisitão, meu preferido, em que um moleque sinistro acompanha o avô mais sinistro ainda no leito de morte. Onze páginas de narração em terceira pessoa atenta aos fatos que importam, personagens repulsivos, atmosfera inquietante, lacunas bem arquitetadas no enredo. O resultado é um grande êxito.


Horror inofensivo


Esses contos são exceções. Predomina no livro a rarefação do horror – cuja concepção, aliás, me pareceu menos perturbadora do que os livros mais antigos do King. Talvez a idade o tenha abrandado. O horror imaginado pelo mestre do horror, hoje, parece mais suave, mais inofensivo do que aquele de O cemitério ou mesmo Cujo, com seu desfecho trágico. Os perigos de Mais sombrio não vazam do livro para a vida; são circunstanciais, antissépticos.


A despeito de tudo isso, King, aos 76 anos, segue sendo um grande contador de histórias. Sabe como poucos e poucas nos manter envolvidos, sempre à espera da próxima frase e da próxima página. O pacto ficcional é poderoso, porque o autor conhece bem “a euforia de deixar a vida comum e rotineira para trás e criar laços com pessoas que não existem”, conforme afirma no posfácio de sua coletânea. Mantendo a média de mais de um lançamento por ano, sua fome está longe de acabar.

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