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  • Foto do escritorOscar Nestarez

"Là-bas": conheça o romance satanista que escandalizou a França do século 19

Livro serve como registro do trânsito espiritual do autor francês Joris-Karl Huysmans



Capa de "Nas profundezas" (ed. Carambaia - Divulgação)

Existem livros que assustam, mas que não são exatamente de horror. Histórias que chocam e amedrontam, ainda que seus autores não tenham utilizado as peripécias narrativas tão características daquele gênero literário. Em vez disso, a fonte do horror está na apresentação feita por esses autores de vivências próprias, de momentos históricos ou de personagens reais monstruosos, ainda que filtrados pela subjetividade da ficção.


Não nos referimos, aqui, à chamada literatura de testemunho, produzida por escritores que viveram os horrores de nossa história (como É isto um homem?, de Primo Levi, ou O Diário de Anne Frank). Falamos de obras que resultam da rebelião de seus autores contra suas próprias épocas. Rebelam-se no campo da criação artística, buscando no passado a inspiração para seguir produzindo no presente, e rebelam-se nas dimensões do espírito, procurando por experiências radicais, bem distantes dos lugares comuns.


No final do século 19, ninguém parecia amar mais o passado e abominar tanto o lugar comum quanto o escritor francês Joris-Karl Huysmans. E seu romance Nas Profundezas (Là-bas, 1891), que acaba de ser reeditado no Brasil pela editora Carambaia com tradução de Mauro Pinheiro, é uma poderosa demonstração desses sentimentos.


Pervertendo Dorian Gray


Nascido em Paris no começo de 1848 como Charles-Marie-Georges*, o próprio nome artístico que Huysmans escolheu para si indica esse incômodo com seu tempo: Joris-Karl, que vem de seus antepassados holandeses.


Ao longo da carreira, a inquietude o levou a transitar entre diferentes correntes literárias. No início, engrossou as fileiras do Naturalismo ao lado de Émile Zola; depois, seu romance Às Avessas (À rebours, 1884) colocou-o como expoente do Decadentismo (trata-se do livro que perverteu Dorian Gray no clássico de Oscar Wilde); por fim, vem a fase chamada de Conversão, em que o autor perscruta a espiritualidade e acaba por se converter ao catolicismo.


Nas profundezas surge nesse último período. No entanto, assim como Dante mergulha no Inferno até ascender ao Paraíso, Huysmans, antes de se curvar diante do Altíssimo, parece perseguir intensamente o Baixíssimo. Na narrativa, o herói dessa busca é Durtal, um escritor desencantado com seu século.

Alter-ego declarado de Huysmans, Durtal também se mostra insatisfeito com a produção artística “americanizada” e a “sociedade promíscua” da França em que vive. Revela-se aí o motor do romance: a busca pelo “além do Mal”, por algo que o afastasse da “completa esterilidade” e das “exaustivas lenga-lengas” do Naturalismo e do materialismo vigentes à época.


A insatisfação leva Durtal à Idade Média. Mais precisamente até o “castelo de Tiffauges, ao lado de Barba Azul” — como ficou conhecido o marechal Gilles de Rais, que, no século 15, lutou contra os ingleses ao lado de Joana D’Arc e depois se transformou em uma das figuras mais sanguinárias de que se tem notícia. São atribuídos a ele os assassinatos de centenas e centenas de crianças.


Enquanto leva uma vida social acanhada — salvo pelas animadas conversas com Des Hermies, seu único amigo —, Durtal escreve a biografia deste enigmático homem. Gilles de Rais “foi bravo capitão e bom cristão, e se tornou subitamente sacrílego e sádico, cruel e covarde”. Na verdade, o biógrafo se mostra fascinado pelo satanista em que o marechal se transformou.


“A última treva do Mal”


Cercado por alquimistas e ocultistas, o Barba Azul é apresentado aos leitores de Nas Profundezas da forma mais aterradora possível. Não somos poupados de nada: a tortura, o estupro e a decapitação de centenas de crianças, descritos em pormenores, já bastariam para castigar o mais forte entre nós. Até porque, filiando-se à escola naturalista, Durtal apresenta documentos oficiais que comprovam a barbárie.


Mas há, também, a perversão do espírito dessas crianças. E aqui, a ficção intensifica o horror. Com uma prosa refinada e descrições minuciosas, Huysmans, via Durtal, preenche com sua imaginação as lacunas dos registros históricos, levando-nos aos calabouços e às masmorras do castelo do marechal.


Nestas câmaras dos horrores, “ele [Gilles de Rais] quis fazer a criança sofrer no corpo e na alma; por meio de um embuste satânico, ele iludiu a gratidão, ludibriou o afeto, roubou o amor. E assim [...] ingressou na última treva do Mal”. A cena descrita a seguir é vívida e de uma crueldade sem precedentes.


Uma cruz na sola do pé


Acompanhando a redação da biografia, temos a própria jornada pessoal de Durtal em busca do diabolismo de sua época. Nos poucos círculos sociais que frequenta, ele ouve falar de um tal cônego Docre, que realiza missas negras “em plena Paris do século 19”. Segundo dizem, o homem tem uma cruz tatuada na sola do pé para “pisar o tempo todo no símbolo principal do cristianismo”.


O cônego e a possibilidade de testemunhar a cerimônia satânica fascinam o protagonista. E a expectativa criada por Huysmans em torno de Docre é mais um dínamo do horror: Durtal recebe informações esparsas sobre ele, mas precisas o bastante para que, na sua mente e na dos leitores, outro monstro se erga, ainda que em meio às névoas da incerteza.


Durtal acaba por conseguir o que deseja. As portas da missa negra se abrem graças a Hyacinthe Chantelouve, esposa de um colega que se torna sua amante. Uma personagem, aliás, que de início se mostra opaca, mas que aos poucos se revela instigante, com algo de súcubo — quando vai para a cama com Durtal, mostra-se “selvagem” e sua voz se distorce, tornando-se “mais gutural, mais grave”.


O horror do não-narrado


Com efeito, a senhora Chantelouve tem suas conexões nos subterrâneos do satanismo. Ex-amante de Docre, promete a Durtal levá-lo à próxima missa negra conduzida por ele, o que acontece rapidamente.


Em uma noite de inverno, ambos partem para “o alto de Paris”, rumo “a uma espécie de beco”, com “casas baixas e tristes”. Em uma dessas casas, acontece a cerimônia, que Durtal acompanha a distância. Ele não consegue tirar os olhos do cônego, cuja “fisionomia era malvada e perturbada, mas enérgica, e os olhos eram severos e fixos” — a inspiração para esse personagem teria vindo de um religioso belga, que Huysmans de fato conheceu.


Após testemunhar todo tipo de sacrilégio, Durtal enfim se ultraja com o ritual que presencia: “um sopro de loucura” entre o cônego, os coroinhas (na verdade, “homens pervertidos”) e as mulheres presentes, com direito a urros e transformações faciais hediondas.


O protagonista decide fugir. Leva consigo a senhora Chantelouve, a quem arranca de um transe. E a nós, leitores, cabe somente especular o que aconteceu a seguir na missa, o que torna a leitura assombrosa, mais uma vez.


A revolta dos cidadãos de bem


Tudo isso não passou incólume. Na época em que os capítulos de Nas Profundezas foram veiculados como folhetim no jornal L’Écho de Paris, leitores pressionaram para que a publicação fosse suspensa. Ao ser lançado no formato de livro, sua venda chegou a ser proibida nas livrarias de estações ferroviárias. 

O escândalo se deve, também, à própria figura excêntrica de Huysmans: há indícios de que o autor tenha de fato acompanhado uma missa negra. Vale lembrar que ele também já havia estremecido a cena literária europeia com Às Avessas, que acabou se tornando sua publicação mais conhecida.


No entanto, Nas Profundezas merece ser lido. Para além das atrocidades narradas, há passagens de inegável beleza literária. Há, também, monólogos interiores e diálogos repletos de referências filosóficas, religiosas e artísticas. Por fim, o livro se transformou no registro do trânsito espiritual do autor, que logo depois se tornou um católico impetuoso.

Diante de tudo isso, é muito bem-vinda a nova edição de Nas Profundezas. É verdade que existe o risco de o lançamento causar mais revolta, dado o atual estado de coisas. Mas, se assim for, Durtal e Huysmans já terão nos mostrado a rota de fuga: pela arte, sempre.

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