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  • Foto do escritorOscar Nestarez

LGBT+ na literatura de horror: a baixa representatividade é que assusta

Se o medo é território livre, por que há tão pouco espaço para personagens, autores e temáticas LGBT+?



Tom Cruise e Brad Pitt em cena do filme "Entrevista com o vampiro" (Divulgação)

Histórias de horror costumam dividir opiniões. Há quem seja absolutamente apaixonado por elas (caso do signatário deste texto e de milhões de pessoas), mas também há quem não possa chegar perto de livros, filmes ou games do gênero.


Seja como for, falar de ficção de horror é falar, em maior ou menor grau, de uma das sensações mais universais que existem: o medo.


Salvo raríssimas exceções (psicopáticas, provavelmente), nenhum de nós está livre de sentir medo. E nem nos referimos ao medo do perigo real, que funciona como mecanismo de sobrevivência e deflagra um estado físico e psicológico de alerta; não.


Falamos do medo conhecido como estético, causado pela “ameaça segura” de uma obra de arte — pela construção imaginária de um escritor, um roteirista, um cineasta. Quão convincente é a ameaça do livro, do game ou do filme: eis a magia de uma obra de horror de qualidade.


No entanto, em tempos nos quais a representatividade (enfim) entrou em pauta, fica a pergunta: se o medo é território livre, por que há tão pouco espaço para personagens, autores e temáticas LGBT+?


Estereótipos que morrem rápido


Na verdade, quando se trata de cinema, o espaço é quase nenhum. De acordo com esta matéria da Wired, ou os filmes do gênero não trazem personagens LGBT+, ou são apresentados de forma estereotipada.


Sem contar que, quando existem, essas personagens figuram entre as primeiras vítimas do vampiro, do monstro, do assassino ou do que quer que seja — quem assistiu a Blacula, clássico de blaxploitation, provavelmente se lembra de que o casal gay é o primeiro a morrer. Há vários outros exemplos parecidos.


Mas vamos nos ater à literatura, onde a lacuna também é inaceitável. Inaceitável e surpreendente, dado o sucesso que a ficção de horror faz em meio ao público gay: imenso.

Basta fazer uma rápida pesquisa entre leitores, autores e fãs do gênero para constatar isso. Recentemente, foi criada até a categoria: queer horror, que evitaremos adotar aqui por ainda se tratar de um termo bastante difuso.


Para Clive Barker, um dos maiores autores de horror da atualidade, a conexão entre o público LGBT+ e o gênero tem explicação simples. Nesta entrevista para a revista Nightmare, ele afirma que “em boa parte da ficção de horror, o freak (a aberração) está no centro das atenções, e tende a vencer”. Assim, é natural que, historicamente tratado como freak, o público homossexual veja com simpatia — e empatia — tramas em que a aberração triunfa.


Herói queer


Homossexual assumido, Barker sabe do que fala. Pois é reconhecida a relevância que ele confere à representatividade LGBT+ nos contos, novelas e romances de horror e fantasia que escreve.


Os exemplos são inúmeros: os protagonistas de Nas colinas, as cidades, um dos mais belos e assustadores contos de Clive Barker, são homossexuais; Restos humanos, outro conto da série Livros de Sangue, traz um homem que se prostitui, sem juízos de valor a respeito de sua profissão ou orientação sexual.


Nos Evangelhos de Sangue, o romance que encerra a saga literária de Pinhead e de Hellraiser, há dois personagens gays: Caz e Dale, que são fundamentais para a trama; há também uma mulher trans de relevo. E, na epopeia de fantasia Imajica, Pie’Oh’Pah é um(a) misterioso(a) assassino(a) sem gênero definido. 


Humanos, acima de tudo


O autor britânico não é o único a dar destaque a personagens e temáticas LGBT+ na literatura de horror. Stephen King também dá preciosas contribuições — entre outros, Adrian Mellon e Don Hagarty, de It: A Coisa, e Curtis Johnson, do conto No maior aperto (da coletânea Ao cair da noite) são alguns exemplos.


E jamais poderíamos deixar de citar a relação livre que os vampiros de Anne Rice têm com a sexualidade. No entanto, os personagens LGBT+ de Barker destacam-se não por constituírem o outro ou o estranho, mas simplesmente por serem heróis ou vilões — de acordo com suas ações, e não com sua sexualidade. Em uma palavra, por serem um humanos, acima de tudo.


Obras marcantes


É fato, também, que Clive Barker, Stephen King e Anne Rice não estão sozinhos. Na cronologia da ficção literária de horror, há livros que contribuíram, direta ou indiretamente, para a presença justa e igualitária de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais nas histórias — mesmo se produzidas em épocas nas quais essa questão estava muito longe de ser relevante.


Abaixo, destacamos algumas entre elas que consideramos importantes:


O Monge (1796), de Matthew Gregory Lewis


Romance da primeira fase da literatura gótica, que, como se sabe, deu origem à literatura de horror. A propósito, na época, diversos autores seriam o que hoje denominamos de queers, principalmente porque sua sexualidade resistia a qualquer definição (ainda que não haja evidências em suas biografias -- o que certamente os levaria à prisão ou mesmo à morte).


O inglês Matthew Gregory Lewis era um deles, e sua obra refletia isso. Em O Monge, por exemplo, há uma personagem, Matilda, cuja sexualidade jamais é realmente definida. Já Don Raymond é assombrado pela assustadora figura da Freira Sangrenta, apresentada por meio de curiosas características fálicas.


Carmilla (1872), de Joseph Sheridan Le Fanu


Muito antes de Lestat, de Louis e de outros vampiros de Anne Rice, o irlandês Sheridan Le Fanu já colocava a homossexualidade em cena nas histórias sombrias.


Em seu mais famoso romance, a narradora e protagonista Laura relaciona-se com a sorrateira vampira que dá nome à obra. Acresça-se, a isso, o saboroso detalhe de que Carmilla somente ataca/enfeitiça mulheres.


O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde


Embora não se trate (somente) de um romance de horror, a magnum opus do também irlandês Oscar Wilde contém inúmeros elementos do gênero — o grotesco, o suspense e a ambientação soturna são apenas alguns.


Na história do belo jovem que tem seu corpo inteiro retratado no quadro do artista Basil Hallward, o protagonista e Lord Henry Wotton vivem juntos, entregues à devassidão e ao hedonismo. Além disso, é latente (embora implícita) a paixão de Basil por Dorian.


O livro ganha ainda mais significado ao lembrarmos da penúria enfrentada pelo próprio Wilde, que foi a julgamento por “cometer atos indecorosos” com diversos rapazes. E que foi condenado (na Inglaterra Vitoriana da época, a homossexualidade era delito grave), passando dois anos na prisão e jamais se recuperando — morreu pobre, três anos depois.


Deixe ela entrar (2008), de John Ajvide Lindqvist


O último da lista talvez seja uma surpresa para quem só assistiu às versões cinematográficas. Mas, de acordo com diversas listas (incluindo esta do GoodReads), o romance do sueco John Ajvide Lindvist é uma das mais assustadoras conjugações recentes de temáticas LGBT+.


Para começar, há o tabu da homossexualidade personificado por Hakan, uma espécie de monstro queer; além disso, Lindqvist conta a tocante história da relação entre um adolescente e uma criatura vampiresca que um dia foi menino, mas que agora está presa em uma espécie de limbo intergêneros.


O resultado é uma obra poderosa. Deixe ela entrar transforma, com sutileza e às vezes brutalidade, as ansiedades causadas pela identidade de gênero e pela sexualidade adolescente em uma história de horror memorável — capaz de causar medo em seres humanos de qualquer orientação. 

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