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  • Foto do escritorOscar Nestarez

H. P. Lovecraft contra a vida*


Howard Phillips Lovecraft é tão misterioso quanto a sua obra. Reservado, introspectivo e recluso, é também um dos mais estranhos autores de que se tem notícia. A névoa de mistério que o cerca só faz intensificar a particular atmosfera de suas histórias. Jamais saiu da América do Norte, e mesmo assim explorou os meandros da imaginação como poucos, antes ou depois dele.

Para compreendermos a formação de um dos fundadores da ficção moderna de horror, precisamos viajar para cidades submersas e continentes esquecidos. Precisamos sobrevoar as montanhas colossais que ele ergueu ao redor de si para se proteger de uma realidade que de várias formas tentou esmagá-lo.

Porque a vida, desde o princípio, pareceu disposta a atacar Lovecraft – e a ficção de horror foi a forma que o autor encontrou para revidar.


Poucos amigos, mas cercado por livros


Filho único do negociante de joias e metais preciosos Winfield Scott Lovecraft e de Sarah Susan Phillips, Howard nasceu em 20 de agosto de 1890 na cidade de Providence, Rhode Island (EUA).


Logo aos três anos, enfrentou a primeira tragédia: o pai sofreu uma grave crise nervosa e foi confinado em casas de repouso, onde ficou até o fim da vida. Assim, Howard foi criado pela mãe e pelo avô, que despertou nele a paixão pela leitura. Dono de uma rica biblioteca, arranjou para o neto versões infantis da Ilíada e da Odisséia, de Homero, e de As Mil e uma noites, que causaram profunda impressão. O avô foi também o responsável pelo primeiro contato da criança com os clássicos da literatura gótica de horror, que a marcariam para sempre.

O garoto Howard revelava um intelecto potente. Recitava poemas desde os dois anos de idade e logo passou a escrever os seus próprios. Mas a saúde seguia caminho inverso: de nervos e compleição muito frágeis, vivia doente.

De acordo com um de seus biógrafos, o autor de ficção científica Lyon Sprague de Camp, ele sofria de poiquilotermia, complicação rara que faz com que a pele se resfrie sempre que tocada. Por isso, raramente ia à escola. Passava os dias a ler, absorvendo uma quantidade assombrosa de informações por conta própria.


Salvo pela ciência


A partir dos oito anos, Howard passou a desvendar as maravilhas da ciência – primeiro por meio da química, depois da astronomia. Começa a registrar seus “achados” nos jornais que escrevia por conta própria e distribuía entre os poucos amigos que tinha. A atitude foi encorajada por professores e colegas da escola que às vezes frequentava. Alguns anos depois, chegou até a elaborar uma coluna mensal sobre astronomia no Pawtuxet Valley Gleaner, um dos jornais locais.

As coisas andavam bem para o suscetível garoto – até que, em 1904, o avô morre. A perda do alicerce e provedor da família foi devastadora. A dissolução dos bens lançou filha e neto em sérias dificuldades financeiras, e os dois tiveram que se transferir da confortável propriedade de até então para as modestas cercanias da Angel Street.

A mudança abalou ainda mais o já delicado estado de espírito de Howard. Ele chegou a cogitar suicídio, mas a recém-descoberta sede de conhecimento o faz mudar de ideia, entretendo-o durante alguns anos.

Porém, às vésperas de se graduar no primeiro grau, em 1908, a realidade investiu mais uma vez contra o agora jovem Lovecraft: ele sofreu um colapso nervoso que o impediu de obter o diploma e de cursar a Brown University.

Profundamente abatido, Lovecraft se afastou do convívio social durante cinco anos – até 1913. Neste período, estabeleceu uma aproximação doentia com a mãe, também conturbada.


Revista pulp é lugar de horror, não de amor

Foi necessário um acontecimento curioso para trazê-lo de volta à superfície: leitor ávido das famosas revistas de ficção científica e fantasia feitas com papel de baixa qualidade de então (as pulp magazines, revistas de “polpa”), Lovecraft incomodou-se com o enredo de um conto água-com-açúcar publicado à época. E decidiu escrever uma carta para atacá-lo.

A missiva foi publicada, o que resultou em polêmica e o atraiu para um acalorado debate com editores dessas publicações. O burburinho chamou a atenção de Edward F. Daas, então presidente de uma associação que reunia escritores amadores que publicavam suas próprias revistas.

A convite dele, Lovecraft se juntou ao grupo em 1914 e então passou a produzir com certa regularidade: publicou treze edições de O Conservador, seu próprio jornal, e contribuiu volumosamente com poemas e ensaios para outras publicações.

Toda essa atividade acabou o salvando de um provável esquecimento, como ele próprio admite:

“Em 1914, quando a gentil mão do amadorismo me foi estendida pela primeira vez, eu estava tão perto do estado de vegetação quanto qualquer animal pode estar (...) Pela primeira vez eu pude imaginar que meus desajeitados sapateios sobre a arte eram algo mais do que fracos lamentos perdidos em um mundo que se recusava a ouvi-los”, escreveu ele em O horror sobrenatural em literatura.

Contista recomeçando a criar


Foi essa agitação que levou Lovecraft a retomar a pena da ficção. No verão de 1917, ele escreve os primeiros contos a se tornarem mais conhecidos: A tumba e Dagon.

Mas a produção ficcional ainda era ocasional. Durante um período de rara serenidade, o autor se ocupava principalmente com ensaios, poemas e uma animada troca de correspondência com outros escritores. Até que, em 1919, foi a vez de sua mãe sofrer um colapso. Internada no hospital local, de lá jamais saiu, morrendo três anos depois.

Lovecraft ficou novamente despedaçado, mas conseguiu se recompor com mais agilidade. Reapareceu socialmente algumas semanas depois, em uma convenção jornalística em Boston. Lá, conheceu sua futura mulher, a designer de chapéus Sonia Green.


O horror em Nova Iorque


Os dois se casaram três anos depois e Lovecraft mudou-se para o apartamento dela, em Nova York. As perspectivas eram boas: ele conseguira se estabelecer como contista profissional após a renomada revista Weird Tales aceitar inúmeros de seus trabalhos, e ela comandava uma bem-sucedida loja de chapéus na Quinta Avenida.

Mas, como não poderia deixar de ser, a calmaria foi breve. A loja logo abriu falência, Lovecraft recusou o posto de editor que lhe foi oferecido pela Weird Tales por implicar mudar-se para Chicago, e a saúde de Sonia se deteriorou rapidamente, obrigando-a a uma temporada em um sanatório.

Ao sair de lá, em 1925, ela conseguiu um trabalho em Cleveland. E Lovecraft foi forçado a se mudar para um apartamento de solteiro na desoladora região de Red Hook, em NY. Iniciou-se um novo período de depressão e isolamento na vida do autor. Politicamente conservador, ele se sentia incomodado pela “massa estrangeira” da cidade e ardia de saudade pela querida Providence natal.

Os trabalhos de então refletem essa situação: a ficção vai da nostalgia de A casa abandonada até a misantropia de Horror em Red Hook e Ele. Até que, em 1926, ele enfim concretizou o desejo de voltar para Providence. Mas a um alto custo: sua família era contra o casamento com Sonia, judia e sete anos mais velha. Então, mesmo envolvido com a esposa, Lovecraft é forçado a pedir o divórcio, que ocorreu em 1929.


Retorno ao amado pedacinho de passado


De volta à cidade de origem – que, como representação arquitetônica do passado ao qual julgava pertencer, ele amava –, e agora sem laços com o mundo além dela, Lovecraft passou a viver a década final de sua vida. Que também foi a mais prolífica. Foi quando ele se estabeleceu como o autor de “estranhos contos” da Nova Inglaterra; foi quando produziu as obras mais conhecidas, como O chamado de Cthulhu, A sombra fora do tempo e Nas montanhas da loucura; e foi quando ele inspirou vários jovens escritores da região, como August Derleth e Fritz Leiber, com quem se correspondia.

Mas os anos finais foram especialmente cruéis: a tia preferida faleceu, um dos mais íntimos correspondentes cometeu suicídio e os contos se tornaram longos e complexos demais para serem publicados. Paralelamente, o câncer no intestino que o levaria já estava desenvolvido a ponto de afastar qualquer possibilidade de cura. Lovecraft finalmente sucumbiu no dia 15 de março de 1937.


O viajante confinado


Tal foi a vida do autor cuja sombra se projeta até os tempos atuais. Uma existência conturbada, que ajuda a explicar a obsessão pelos mistérios de que somos feitos. Em nenhuma época Lovecraft chegou a experimentar longos períodos de paz ou serenidade; desde cedo, enfrentou problemas que logo o convenceram de que o lugar mais seguro para se permanecer era dentro de si próprio.

Frequentemente doente e tímido por natureza, Lovecraft seria introspectivo mesmo que não tivesse enfrentado tantos percalços. Mas, como enfrentou, não teve saída senão criar um mundo próprio para lá se encerrar, e por meio do qual se expressar.

Um mundo rico em descrições científicas, de relevo implausível, povoado por seres imemoriais e justificado por mitologias malsãs. E, quanto mais explorava esse mundo, mais o usava para preencher os vazios que existem no “nosso”.

Pois a arte de Lovecraft nasce do confronto entre estas duas dimensões. Suas histórias começam como quaisquer outras da época – de forma realista, plausível, verossímil; são expedições que partem rumo ao pólo sul, relatos escritos à mortiça luz de uma vela na madrugada de um claustro, retiros em regiões rurais isoladas. Mas, em algum momento, cruza-se a fronteira rumo ao inverossímil. 

É quando nós, leitores, vemo-nos inconsolavelmente desamparados. É quando Lovecraft convoca um exército de artimanhas para expor a fragilidade de nossa condição. Quando ele propõe respostas aterradoras para perguntas que jamais ousamos fazer -- e, assim, executa uma espécie de vingança íntima contra a vida que tanto o acossou.

Nestes momentos de desamparo, conhecemos todo o vigor criativo do autor. Embora menos ousado do que Edgar Allan Poe (a quem cultuava) quanto à exploração de temáticas diferentes, Lovecraft foi um pioneiro no território do horror imaginário.

E, tão rigoroso quanto o mestre e autor de 'O Corvo', anotou atentamente cada pormenor de suas andanças por aqueles mundos alucinantes -- para, assim, fascinar o nosso. *O título faz alusão ao ensaio "H.P. Lovecraft: contre le monde, contre la vie" (H.P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida) de autoria do escritor francês Michel Houellebecq.

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