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  • Foto do escritorOscar Nestarez

George Romero e a literatura dos mortos-vivos*


Romero em meio às suas criaturas (divulgação)

Conheça as obras que ajudaram a formar o universo zumbi consagrado pelo diretor de clássicos como 'A Noite dos Mortos-Vivos'


Em 16 de julho de 2017, a causa zumbílica perdeu aquele que provavelmente foi seu maior entusiasta: o cineasta norte-americano George Romero. Morto aos 77 anos em Ontário, no Canadá, Romero era conhecido como um dos principais responsáveis por alçarem os zumbis à categoria em que atualmente os encontramos: verdadeiros superstars, arrastando seus trapos e corpos putrefatos por livros, seriados, filmes e games como nunca antes.


Em homenagem ao mestre, aproveitamos este espaço para compor um breve panorama literário dos mortos-vivos. Afinal, antes mesmo de Romero e alguns amigos juntarem 100 mil dólares para produzir um marco chamado A Noite dos Mortos-vivos, em 1968, os zumbis já claudicavam por páginas de diversos livros.


E, embora a temática não fosse tão difundida como é hoje, algumas obras marcaram época -- provavelmente influenciando boa parte da geração à qual pertencia o próprio cineasta. 


William Seabrook: o “pai literário” dos zumbis

É fato que o tema do retorno dos mortos sempre marcou presença na literatura de horror e gótica -- e até mesmo antes. Autores como Mary Shelley (em Frankenstein), Edgar Allan Poe (em Ligéia, Os fatos do caso do Sr. Valdemar e em outros contos) e HP Lovecraft (em Herbert West - Reanimator) abordaram-no de formas tão inventivas quanto poderosas.


No entanto, o zumbi como o conhecemos – literalmente descerebrado, vagaroso e putrefato – é mais jovem. Como afirma Filipe Larêdo, pesquisador do assunto, neste artigo, o primeiro registro zumbi no cenário literário anglo-saxônico é de 1929.

O livro chama-se A Ilha da Magia, foi escrito pelo norte-americano William Seabrook e tem como pano de fundo o cenário haitiano.


Amigo do célebre ocultista Aleister Crowley, Seabrook foi também um aventureiro e tanto. Em 1928, ele desembarcou no Haiti, que era considerada a “capital do voudoun (vodu) caribenho”. E as experiências vividas por lá deram origem a vários livros, incluindo A ilha da magia.


Livro de receitas para preparar um morto-vivo

Na obra – que é uma espécie de diário de viagem –, William Seabrook afirma ter sido apresentado a zumbis de verdade por um fazendeiro haitiano chamado Polynice. Além disso, no texto ele revela ter testemunhado a transformação de pessoas em mortos-vivos – que, na crença vodu, simbolizavam o medo, a desgraça e a perdição.


Aliás, a base do vodu, de acordo com Filipe Larêdo, é a possessão dos corpos por deuses. Nos rituais, a música e a dança levam os praticantes a estados similares ao transe, abrindo as portas para que os deuses possam dominá-los. Quando isso ocorre, a alma essencial da pessoa é retirada do corpo e a possessão se completa.


Mas as coisas desandam quando, durante o ritual, um feiticeiro de má índole coordena os trabalhos. Seabrook relata que ele leva as vítimas à “morte” da alma por meio de magia e poções. Em seu livro, conhecemos relatos dos procedimentos que adoeciam as pessoas e as levavam a uma morte aparente. Depois, o feiticeiro capturava a alma essencial e, logo após o enterro, trazia o corpo de volta à vida, transformando-o num zumbi.


Mortos-vivos para além do vodu

Até meados dos anos 1940, o zumbi era considerado um exótico representante de crendices tropicais. Pouco tempo depois, no entanto, ele recebe um novo status, graças a motivos altamente improváveis: de geopolítica. Mais especificamente, graças à Guerra Fria.

Pois o planeta estava dividido. De um lado, havia os Estados Unidos, legítimos representantes de um sistema econômico – e de uma visão de mundo. Do outro, a União Soviética levantando a bandeira do socialismo – e dona de uma visão de mundo bem diferente. Sob os polegares de ambos, um botãozinho vermelho capaz de mandar o nosso planetinha pelos ares.


Com efeito: naquele momento, a ameaça nuclear tornou-se um fato. Que, ao lado de desvairadas associações entre comunistas e extraterrestres, serviu de inspiração para que novas origens fossem atribuídas aos zumbis.


Matheson e o apocalipse zumbi

O fim do mundo parecia mesmo iminente. E foi nesse contexto apocalíptico que começou a se desenvolver o que hoje conhecemos como... bem, o apocalipse zumbi.


Um importante papel nesse desenvolvimento deve ser atribuído ao autor norte-americano Richard Matheson. Ainda que utilizando antagonistas algo vampirescos, seu Eu sou a lenda (1954) tornou-se inegável fonte de inspiração para as pandemias de mortos-vivos que hoje assolam páginas, telinhas, telas e telonas.


Se você não conhece o livro de Matheson, a história vai soar familiar: uma impiedosa praga assola o mundo, transformando cada homem, mulher e criança do planeta em algo digno dos pesadelos mais sombrios. Nesse cenário pós-apocalíptico, tomado por criaturas famintas e sedentas, o herói acredita ser o último homem na Terra.    


Hoje, esse plot pode soar batido. Mas não parece exagero culpar o próprio romance de Matheson por isso: tamanho foi o sucesso da história, que sua influência permanece até os tempos atuais, rendendo inúmeras cópias de valor artístico infinitamente menor.


Zombie King

Stephen King sentiu essa influência como ninguém. Em carta dos anos 90 enviada a um fã, King afirma que os livros de Matheson o “ensinaram a escrever”, e que ele era um “criador de maravilhosas histórias de pessoas ordinárias cujos mundos ordinários estão virados do avesso por horrores extraordinários”.


Aliás, o mestre do horror também teve seus flertes com o mundo dos zumbis. Em 2006, King escreveu Celular – inclusive dedicando o livro ao amigo George Romero, com quem já havia trabalhado nos filmes Creepshow: Show de Horrores (1982) e A Metade Negra (1993).

No caso de Celular, o apocalipse zumbi não é provocado por um produto químico ou por uma epidemia nuclear, mas sim pela tecnologia. São as ondas sonoras emitidas por aparelhos celulares que transformam os homens em animais irracionais – e canibais, claro.

Mesmo antes da publicação de Celular, Stephen King já havia escrito o conto Parto em Casa, publicado na coletânea Pesadelos e Paisagens Noturnas, e o livro O Cemitério – que, apesar de não tratar de um apocalipse zumbi, também lida com mortos-vivos.

No entanto, a série mais bem-sucedida comercialmente é As Crônicas dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira. Ao todo, já são cinco livros e um sexto volume está a caminho. Mais de 100 mil exemplares já foram vendidos.


Oliveira relata um pouco de sua experiência: “Não é muito comum a literatura de horror no Brasil fazer sucesso comercial, apesar de termos alguns bons autores como André Vianco e Raphael Montes. Além do mais, eu tenho um concorrente de peso, que é a série The Walking Dead. E eu sabia que as comparações seriam inevitáveis. Mas, para a minha felicidade, a aceitação foi muito positiva”.


Uma aceitação que, a julgar pelo sucesso que os zumbis continuam fazendo, não dá sinal de esfriar. Ainda que muita gente já tenha decretado a morte do gênero, ele sempre ressurge mais forte (deliciosa ironia). Mais forte e – graças a criadores como Seabrook, Matheson, Romero, King, Oliveira e tantos outros – mais carismático do que nunca.


*Texto escrito em colaboração com Vitor Abdala, jornalista e membro da Horror Writers Association. Vitor é autor das coletâneas Tânatos (2016) e Macabra Mente (2016), e do romance Caveiras (2018), além de coautor das antologias americanas Horror Library - Volume 6 (2017) e Night Shades #1 (2017).

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