Em um ensaio publicado em 1846, o autor conta os detalhes de como construiu sua obra mais famosa, o poema "O Corvo"
Arrepios, tremores, coração acelerado: quando sentimos medo, o nosso corpo não nos deixa mentir. Por mais que tentemos dissimular, algum mecanismo primitivo é disparado dentro de nós, e toda a racionalidade acumulada ao longo de séculos é subitamente aniquilada pela certeza de que nossa vida está em perigo. É o alerta primitivo, o item de série instalado na espécie humana (e em muitas outras) desde o início de sua montagem, há milhares e milhares de anos.
Trata-se de um dispositivo que, desde então, continua funcionando muito bem. Curiosamente, com o passar do tempo, nós começamos a apreciar esse mecanismo de sobrevivência. De forma indireta, isso se deve ao avanço do cientificismo — sobretudo no século 18. À medida que a ciência foi eliminando as crendices e as superstições da suposta “Idade das Trevas”, alguns dos homens e das mulheres mais imaginativos da época aborreceram-se, e responderam com a ficção. Começaram a contar histórias que confrontavam essa concepção de mundo. Surgiam as narrativas góticas, que inseriam, no presente esclarecido pela razão, os fantasmas e os esqueletos do passado.
Desativando certezas
O “estrago” estava feito. Desde então, o medo foi alçado à categoria de “efeito estético”; ou seja, uma reação que experimentamos ao ouvir, ler ou assistir a uma história, resultado de uma construção ficcional. É também chamado de “medo seguro”, provocado por algo que, no fundo, sabemos não ser real. Pois estamos convictos de que o palhaço Pennywise não saltará da tela do cinema atrás de nós, e de que o demônio Pazuzu não sairá das páginas do livro para possuir nossos corpos. No entanto — e eis aí a magia da ficção —, alguns artistas conseguem desativar essa certeza, ao menos por um tempo.
Entre eles, Edgar Allan Poe ocupa lugar de destaque. É reconhecido o pioneirismo do autor norte-americano em vários aspectos das histórias imaginativas. Mas é preciso destacar um papel que, embora menos difundido, é considerado fundamental para o que hoje entendemos por narrativas que se proponham a causar o efeito estético do medo: o papel de arquiteto.
Manual de instrução
Referimo-nos principalmente à figura que emerge do ensaio A Filosofia da Composição, publicado pela primeira vez em 1846. No texto, Poe explica como criou O Corvo, sua obra mais conhecida (o próprio autor tinha consciência deste sucesso; publicado em 1845, o poema causou considerável impacto imediato, recebendo inúmeras leituras públicas). Essa explicação envolve desmontar e remontar a obra ficcional. Decisão após decisão, peça por peça, o poema ressurge diante de nós como um projeto cuja função é, acima de tudo, causar uma emoção específica.
É o que o próprio Poe afirma no começo do ensaio: “Prefiro começar com a consideração de um efeito”. No caso de O Corvo, a escolha foi pela melancolia, “o mais legítimo de todos os tons poéticos”, e pela morte de uma bela mulher, por ele considerado “o tema mais poético do mundo”.
Quase um papagaio
A partir daí, o autor relata como essa decisão orientou todas as escolhas seguintes. Da definição do refrão Nevermore condizente com o teor melancólico do relato — à opção pela “criatura irracional” que reproduz esse refrão e batiza o poema (Poe chegou a considerar um papagaio), constitui-se a cena que tão bem conhecemos: o rapaz “caindo de sono e exausto de fadiga” que, durante uma noite tempestuosa, recebe a visita da ave em seu quarto.
Entretido, o jovem começa a indagar o corvo sobre assuntos mundanos. No entanto, percebendo que a resposta é sempre a mesma, ele passa a fazer perguntas que, aos poucos, revelam um estado de espírito atormentado. Afinal, o rapaz ainda sofre com a ausência de sua amada Lenora, falecida havia tempos.
As indagações vão se tornando mais intensas até que, na antepenúltima estrofe, o jovem pergunta se, “no Éden celeste”, “nestes retiros sepulcrais”, encontrará aquela que procura, ouvindo a resposta que mais teme: “Nunca mais”. No ensaio, Poe afirma que esses versos foram os primeiros a serem escritos - “o desfecho pelo qual todas as obras de arte deveriam começar”.
Horrere totum
Mais de um século depois de A Filosofia da Composição, e dois séculos após O Castelo de Otranto (1764), a obra fundadora do gótico escrita pelo inglês Horace Walpole, o horror se consolidou como vertente literária.
Na origem dessa categoria, estão as estratégias de confronto da literatura gótica, bem como vários de seus elementos. No entanto, a variedade de temas e o intenso diálogo com outras linguagens (como o cinema) fizeram com que a ficção literária de horror resistisse a classificações já estabelecidas. Assim, ela passou a se definir por aquilo a que seu próprio nome se refere: pelo efeito, ou pela intenção de causá-lo. Afinal, o termo “horror” vem do verbo latim “horrere”, que significa “tremer” ou “arrepiar”.
Embora não tão recente — as primeiras teorias datam de meados dos anos 70 —, a conceituação literária do horror ganhou força com a publicação, em 2016, de Horror - A Literary History (Horror - Uma História Literária). Trata-se de um conjunto de artigos organizado pelo pesquisador espanhol Xavier Aldana Reyes e publicado pela editora da British Library, ainda sem edição no Brasil. Na introdução, Reyes afirma que as narrativas de horror “estabelecem vínculos afetivos com o leitor”, e que “procuram criar um sentimento agudo de desconforto e pretendem despertar sensações e emoções que se configuram como uma ameaça imaginária”.
De volta a 1846
Ora, essa reflexão nos devolve às instruções de A Filosofia da Composição. Ainda que o efeito pretendido de O Corvo seja a o sentimento da melancolia, Poe aplicou o mesmo método de construção — tão rigoroso quanto meticuloso — na escrita de diversas outras obras, sobretudo nos contos que hoje são considerados de horror. Linha por linha, peça por peça, ele projetou e ergueu estas sinistras edificações por onde não nos cansamos de circular. Também espalhou, pelos espaços, os gatilhos do medo.
Os efeitos causados por essas experiências permanecem. Mas não adianta tentarmos escondê-los; são muito mais antigos e mais fortes do que imaginamos. O melhor a se fazer é analisá-los e entendê-los, para, quem sabe, transformá-los em matéria-prima de obras de arte. De preferência, com um certo ensaio debaixo do braço.
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