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  • Foto do escritorOscar Nestarez

"Cupim": livro de horror feminista acaba de sair no Brasil e é imperdível



Certa vez, enquanto passava o verão à beira de um lago com um grupo de amigos, uma jovem teve um pesadelo. Acordou perturbada e resolveu colocar no papel o que havia sonhado. O rascunho, então, foi ganhando forma até se transformar em um romance. Seus amigos o leram e aprovaram. Entre eles estava seu amante, um famoso literato da época.


Dois anos depois, o romance foi publicado anonimamente com um prefácio assinado pelo amante (agora marido da jovem), a quem muita gente atribuiu a história. A autora teve de lutar para provar que o livro era seu. Isso aconteceu muito tempo atrás, mas até hoje há quem desconfie da autoria.


Você deve conhecer essa história. De maneira simplista, o parágrafo acima descreve o que ocorreu a Mary Shelley e seu clássico Frankenstein. O livro foi publicado em 1818, quando Shelley tinha apenas 21 anos.


E em 1831, na terceira edição do romance, ela se viu obrigada a escrever uma introdução rebatendo quem duvidava de sua autoria: “Não é de se admirar que, sendo filha de duas célebres personalidades literárias, tenha-me despertado, desde uma tenra idade, uma inclinação para a escrita”, defende-se ela, referindo-se a seus pais, a filósofa e feminista Mary Wollstonecraft e o romancista e ensaísta político William Godwin.


Pseudônimos contra o apagamento


Mary Shelley é um exemplo famoso de como o mundo ocidental tratou suas autoras durante séculos. Para ficarmos só no campo da literatura sinistra, outros casos foram os das irmãs Brontë, inglesas expoentes do romantismo e do gótico.


Emily e Charlotte Brontë respondem por duas obras seminais desses gêneros, O Morro dos Ventos Uivantes e Jane Eyre, lançadas em 1847. E para a publicação, ambas utilizaram pseudônimos masculinos: Ellis (Emily) e Currer (Charlotte) Bell, de modo a que a recepção dos livros fosse mais favorável. A exemplo das irmãs Brontë, incontáveis mulheres fizeram o mesmo. Mas com o tempo suas identidades foram apagadas e nem seus pseudônimos permaneceram.


Quando selecionamos os contos que compõem a antologia Tênebra - Narrativas Brasileiras de Horror [1839-1899], Júlio França e eu tivemos enorme dificuldade de encontrar autoras para compor o volume: são apenas três entre 27 nomes. E é claro que existiram mais; novos projetos de pesquisa serão necessários para encontrá-las.


Acerto de contas assustador


Por outro lado, o tempo também trouxe alguma justiça. A partir do século 21, e sobretudo dos anos 2010, a autoria feminina se estabeleceu como um marco do gótico e do horror, tangenciando o fantástico.


Em especial na América Latina, de onde vêm saindo as novidades mais interessantes nesses campos. Já tratei do assunto nesta coluna. Agora, pretendo aproximar a lente analítica de um fenômeno que também ocorre há certo tempo, mas que recentemente tem dado seus melhores frutos: o horror feminista.


De início, quero deixar claro o que entendo por horror feminista. Em poucas palavras, é a história assustadora que se constrói a partir de um acerto de contas de personagens femininas. Esse acerto, no geral, tem a ver com diversos tipos de abusos e desigualdades. É a ficção como último refúgio para se reagir a uma realidade que, a despeito da crescente militância e das políticas públicas adotadas nos últimos anos, continua essencialmente hostil ao gênero feminino.


Outro acerto diz respeito ao próprio gênero. Como se sabe, o corpo feminino sempre foi um objeto de exploração preferencial nas histórias assustadoras; o horror feminista se propõe também a esse revide, invertendo a lógica.


Um exemplo contundente vem de um bom episódio de uma série nem tanto, Lovecraft Country (2020). No quinto capítulo da primeira e única temporada, Ruby, uma mulher negra transformada em branca por uma bruxa, testemunha um homem branco abusar de outra mulher preta em um bar. Ela, então, se vinga atraindo-o e o violentando com o salto de seu sapato, em uma sequência que não poupa detalhe algum.


Novas figurações do feminino


Nesta perspectiva, deixo claro que não vejo o maior nome do gênero na atualidade (e me refiro à literatura de horror no geral), a argentina Mariana Enriquez, como uma autora especificamente feminista. Ela tem, sim, um conto emblemático dentro desse espectro, As Coisas que Perdemos no Fogo, resposta feroz ao feminicídio dada por mulheres que recuperam a posse de seus corpos utilizando o mesmo método dos assassinos: a imolação pelo fogo.


No entanto, a literatura de Enriquez parece abrir espaço para novas figurações do feminino. Ela imagina mulheres reconciliadas com uma natureza monstruosa, que já incorporou violências sociais e se brutalizou. Tornam-se elas mesmas assustadoras, apropriando-se com mais autoridade e conhecimento de causa das armas com que sempre foram atacadas.


Jogam o jogo, por assim dizer, contando com um reforço de que seus inimigos não dispõem: a conexão ancestral e telúrica com a própria natureza. São assim algumas personagens de contos como Os Anos Intoxicados, Onde Está Você, Coração?, e do romance Nossa Parte de Noite.


Feminismo como pedra angular


Cupim, romance da espanhola Layla Martínez recém-lançado no Brasil pela Alfaguara, é direto ao acertar contas. A história de duas mulheres, avó e neta, que vivem em uma casa assombrada e são elas mesmas perturbadas por fantasmas tem o feminismo como pedra angular. Mas isso só fica claro à medida que o enredo se desenvolve.


À primeira vista, Cupim é uma ghost story como tantas outras. A casa assombrada em que as duas vivem logo figura como uma extensão do corpo e da mente delas: assim como a avó e a neta, o lugar é cheio de sombras que se movem, perdidas e famintas.


À maneira de mestres como M.R. James e Shirley Jackson, Martínez brilha ao criar cenas elusivas, em que os olhares da avó e da neta quase flagram os fantasmas se escondendo; mas só veem um pé que se recolhe para baixo da cama, uma mão que fecha a porta de um armário. Olhares que sempre chegam tarde demais, mas bastam para nos inquietar.


Em meio a esses fantasmas, há duas ausências que conduzem o desenvolvimento do enredo: a filha/mãe da avó e da neta (nenhuma delas é nomeada) e um menino, filho dos Jarabo, família rica da região para qual a neta trabalhou por um tempo como babá e doméstica. O garoto desapareceu por um suposto descuido da jovem e toda uma investigação se deflagra.


Na conexão entre casa e mentes fantasmagóricas, temos uma fusão das duas principais concepções de locus horribilis dentro da cronologia das histórias góticas: o espaço geográfico, objetivo (como castelos e monastérios nos séculos 18 e começo do 19) e o espaço psicológico, subjetivo (a partir de Henry James e novamente Shirley Jackson).

Mas Cupim escancara sua atualidade quando descobrimos as origens desses fantasmas, bem como das atitudes das protagonistas.


Elogio à nossa inteligência


O horror sobrenatural, aqui, se abre como um território de justiça no qual dinheiro, poder e força física não têm prevalência alguma. É maravilhoso testemunhar esse acerto de contas cruel e violento.


Com um detalhe importante: em nenhum momento Martínez recai no panfletarismo que muitas vezes estrangula a substância literária de livros mais engajados. Em Cupim, ninguém dá palestra; somos nós, leitores e leitoras, que amarramos as pontas.


Destaco ainda a estrutura do romance, um dueto. Cada capítulo é narrado por uma das personagens e a todo momento elas estão em conflito, desmentindo e acusando uma à outra. Assim, o livro também compreende um confronto intergeracional; mas as duas acabam se unindo na hora certa, quando enfim percebem quais são os verdadeiros inimigos.


E o confronto final tem dupla camada: aquela que vemos, assustadora, e outra subjacente, que enaltece nossa inteligência. Como, aliás, tudo o que acontece no fascinante universo de Cupim – cuja autoria, desta vez, conhecemos muito bem.

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