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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Criadora e criatura: o poder de Mary Shelley e seu Frankenstein*

Atualizado: 24 de dez. de 2019

Conheça a história da escritora britânica Mary Shelley, autora de uma das mais célebres obras literárias de terror do planeta


Retrato de Mary Shelley por Richard Rothwell

Há cerca de 202 anos, cinco pessoas estavam reunidas em uma mansão próxima ao lago Léman, em Genebra (Suíça). Naquela época, duas delas já eram ilustres: os poetas Lord Byron e Percy Bysshe Shelley. O primeiro foi descrito por Goethe como o maior gênio do século 19 e tornou-se o protótipo de poeta romântico — sem mencionar os escândalos íntimos que forçaram seu autoexílio. Shelley, por sua vez, havia se destacado nos círculos intelectuais europeus como um autor engajado.


Estavam acompanhados por John Polidori, conhecido como médico de Byron (mas que também fornecia, sorrateiramente, fármacos de outras naturezas a ele), a jovem Claire Clairmont, filha de um proeminente casal de intelectuais ingleses, e sua irmã de criação, Mary Wollstonecraft Godwin, então companheira de Percy Shelley.


A expectativa era de uma temporada vibrante, com passeios, caçadas e outras aventuras ao ar livre. Porém, tratava-se de 1816 — que a posteridade chamou de “O Ano Sem Verão”, devido a graves incidentes meteorológicos. O grupo viu-se obrigado a passar semanas intermináveis dentro da mansão, abrigados contra o céu carrancudo, o frio indesejado e a chuva que desabava sem cessar.


Para tourear o tédio, Byron propôs, então, que todos lessem “alguns volumes de histórias de fantasmas, traduzidos do alemão para o francês”**. A leitura animou-os por um certo tempo, mas logo as narrativas esgotaram-se. Então, surgiu uma nova proposta: que cada um escrevesse sua própria história assustadora. Depois, todos escolheriam a mais poderosa.


O despertar do “arrepiante terror"

Os convivas colocaram mãos à obra. Lord Byron esboçou um fragmento sobre um viajante que testemunha um assassinato na Grécia e, ao retornar ao Reino Unido, encontra o suposto defunto são e salvo cortejando sua irmã. Percy Shelley, por sua vez, compôs um relato baseado nas experiências de sua infância.


John Polidori rascunhou uma narrativa sobre uma mulher amaldiçoada com um rosto esquelético por espiar o que não devia através de uma fechadura (anos depois, ele reescreveria a contribuição de Byron como aquela que seria uma das primeiras obras a tratarem de vampiros na ficção literária, intitulada “The Vampyre”).


E Mary Wollstonecraft Godwin — após uma noite insone, em que se viu atormentada por imagens terríveis — rabiscou sua história. “Uma história que pudesse falar aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse o arrepiante terror”, disse ela.


O relato de Wollstonecraft Godwin foi eleito o melhor entre os quatro. Dois anos depois, em 1818, Frankenstein, ou o Prometeu Moderno foi publicado. E foi assinado já por Mary Shelley (que se casara com Percy), cuja fama, hoje, supera a de seus ilustres companheiros de então.


Não à toa: em 2018, quando completam-se 200 anos da publicação, “Frankenstein” permanece como uma das maiores obras literárias de que se tem notícia. Até hoje reverberam os trovões da “noite pavorosa de novembro”, quando Prometeu — ou melhor, Victor conclui seu trabalho e, por meio de uma combinação entre matemática e alquimia, insufla a vida na remendada criatura que tem diante de si (na versão revisada de 1831, Mary Shelley alterou esse método para a eletricidade).


Berço (literário) esplêndido

Mas, antes da criatura, contemplemos a magnífica criadora. Pode-se dizer que Mary Wollstonecraft Shelley veio ao mundo condenada à literatura. Nascida em 1797, seus pais eram duas renomadas figuras intelectuais da Inglaterra de então: os escritores William Godwin e Mary Wollstonecraft.


Godwin incendiou o debate público britânico com manifestações que poderiam ser consideradas proto-anarquistas. Encontramos essas preocupações no subtexto do seu romance gótico As Aventuras de Caleb Williams ou As Coisas Como São (1794) — que sugere o horror não pelos fantasmas ancestrais de castelos medievais, mas pela opressão perpetradas pela nobreza de seu próprio tempo.


Já Wollstonecraft foi uma pioneira do movimento feminista. Suas contribuições à discussão da situação das mulheres deram-se em frentes diferentes: de tratados como a Reivindicação dos Direitos da Mulher, de 1792, à ficção literária, em que ela abordou os prejuízos causados pela idealização sentimental do papel feminino na sociedade. Por fim, ela própria viveu inúmeros episódios que desafiavam os preconceitos e o moralismo da época.


Embora tenha sido profundamente influenciada pela obra da mãe, Mary Shelley não conviveu com ela, que faleceu onze dias após o seu nascimento. Quatro anos depois, o pai casou-se com uma vizinha, com a qual Mary jamais se entendeu.


Fosse como fosse, a literatura estava inevitavelmente em seu caminho. Ou melhor, a poesia: por volta de 1814, Mary conheceu Percy Shelley, então um admirador de seu pai, e os dois iniciaram um romance. Naquele momento, o poeta era casado.


William Godwin, no entanto, vivia em meio a dívidas, e logo viu-se incapaz de concluir a criação dos filhos. Por isso, assim que atingiram a idade apropriada, eles começaram a ser enviados pelo pai a viagens pela Europa, passando longas temporadas afastados da Inglaterra.


Ausência da figura paterna, inexistência do amor materno, horrores ambientados no tempo presente… não é difícil perceber quanto esses temas e experiências repercutem, de uma forma ou de outra, no romance de Mary Shelley.


Uma das viagens impostas pelo pai acabou levando a futura autora a Genebra, e à véspera da famosa noite daquele ano sem verão. É curioso notar como o próprio tédio ajudou a catalisar a história: de acordo com Mary Shelley, “confinados por dias a fio” na mansão, nada restava aos convivas além de ler e conversar.


Longos foram os debates entre Percy Shelley e Lord Byron sobre o princípio da vida e os “experimentos do Dr. Darwin” (Erasmus, avô de Charles, importante naturalista do século XVIII). Mary acompanhava os colóquios como “muda ouvinte”, certamente tocada pelo fascínio do horror. E foi sob esse feitiço que, na noite seguinte, ela “sonhou” com a história que viria a mudar os rumos da literatura a partir dali.


Dos bluebooks à Turma da Mônica

Mas o que explica tamanho impacto? O que a narrativa, que Mary Shelley terminou de escrever com apenas 19 anos, contém para continuar fazendo tanto sucesso?


E não nos referimos apenas à posteridade: pouco depois de ser lançado, Frankenstein já causava profunda impressão. Virou peça de teatro quatro anos após a publicação, e logo rendeu algumas cópias no formato bluebook — como eram conhecidas as versões simplificadas de histórias góticas, impressas em papel barato para chegar às camadas mais pobres da população.


Já nos séculos seguintes, o impacto generalizou-se. Somente para o cinema, o texto foi adaptado dezenas e dezenas de vezes (e continua sendo) — as primeiras versões para a telona, inclusive, ajudaram a criatura a “roubar” o sobrenome de seu criador, tornando-se ela, e não Victor, conhecida como Frankenstein.


Também para os palcos o romance continuou sendo adaptado; e, dos games às séries da Netflix, nenhum novo formato resistiu ao apelo da história. Até Mauricio de Sousa apropriou-se da criatura, transformando-a no simpático Frank da Turma do Penadinho.


O drama e o horror

Mas limitemo-nos à história original: a nosso ver, a força motriz do romance está no drama e em sua principal consequência, o horror. Pois “Frankenstein” é uma história de um homem que falha; movido e cego pela ambição científica, Victor acaba por trazer somente ruína — para si, para as pessoas que ama e, principalmente, para o ser que criou. 


Assim como Prometeu (o titã que roubou o fogo de Héstia para dar aos mortais e foi punido), Victor Frankenstein padece por sua afronta não a Zeus, mas à natureza. E padece sem demora: logo após dar vida ao ser, ele foge de sua própria casa, devorado pelo arrependimento e pelo temor.


Não tarda, também, para que a criatura sucumba. Ela logo ganha consciência de si e do horror que sua figura causa nas pessoas das quais tenta aproximar-se. O relato que ela faz ao criador é comovente, e não seria exagero colocá-lo entre as mais belas passagens da literatura ocidental. Logo ficam claros os motivos que transformaram uma figura tão humana no “monstro”, no “demônio” temido e odiado por Victor. 


Quão longe é longe demais?

Fiona Simpson, poeta e editora do The Guardian, atribui os duzentos anos de sucesso do romance também a uma pergunta fundamental: “quão longe é longe demais?”. Ou seja, diante de uma natureza que a ciência não cessa de desvendar, quais são os limites da nossa vontade de superá-la?


Nesta matéria para o jornal britânico The Guardian, Simpson afirma que a pergunta está no coração do romance de Mary Shelley. A indagação exprime o dilema entre a fé no progresso e o medo da mudança — um confronto “essencialmente contemporâneo”, segundo ela. 


No caso de “Frankenstein”, a aposta é justamente nesse medo, que, em termos literários, Mary Shelley explora de forma brilhante. Marcada pelo romantismo e pelo gótico então vigentes, a autora leva seus personagens a cenários naturais tão belos quanto desolados, e constrói cenas que ainda hoje frequentam pesadelos.


Basta lembrarmos do primeiro encontro de Robert Walton, o jovem idealista e aventureiro cujo relato inaugura a história, com a criatura, perto do Ártico: carregada de suspense e sugestão, a passagem constitui uma aula magna da literatura de horror. E como ela, há várias outras ao longo da narrativa.

Ainda hoje, não há resposta fácil. As opiniões dividem-se, e eis outro mérito do romance de Mary Shelley, que escapa a um maniqueísmo fácil. Pois não se trata do bem contra o mal ou da virtude contra o vício, mas da ciência desmedida, da razão que sonha e que delira, assim produzindo monstros — como profetizou o pintor espanhol Francisco de Goya.


Por tudo isso, hoje, duzentos e dois anos após aquela tremenda noite, saudamos o mais famoso desses monstros — seja ele Victor Frankenstein ou a criatura. E acima de tudo saudamos a sua criadora, que sabemos muito bem quem é.


* Artigo co-escrito com Cid Vale Ferreira. Cid é editor e livreiro aficionado por literatura, cinema e quadrinhos. Editou os sites Sépia Zine e Carcasse e organizou os livros Voivode (Pandemonium) e As Trevas e Outros Poemas de Lord Byron (Saraiva). Atualmente, é sócio do Sebo Clepsidra, no centro de São Paulo.

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