Crítica: Presunção e bom-mocismo arruínam "Presença", de Steven Soderbergh
- Oscar Nestarez
- 16 de abr.
- 3 min de leitura

Uma família se muda para uma casa nova. Uma bela e ampla residência, que representa também uma vida renovada — a família precisa disso, pois fora abalada por uma tragédia recente, a morte violenta de uma amiga da filha adolescente. Por algum tempo, tudo parece melhorar; aos poucos, porém, os velhos problemas vão reaparecendo, acompanhados de um novo: existe um fantasma na casa. Ele vai se manifestando devagar, no começo apenas para uma pessoa, que é tida como louca, e depois para os demais.
Quantas vezes você já viu ou leu uma história parecida? Muitas, tenho certeza. É exatamente esse o enredo de Presença, novo filme do americano Steven Soderbergh (Sexo, mentiras e videotape e Onze homens e um segredo) que estreia nesta semana nos cinemas brasileiros, com elenco encabeçado por Lucy Liu e roteiro do veterano David Koepp (Jurassic Park e Missão impossível). Aqui, no entanto, há uma diferença importante: toda a história é relatada do ponto de vista do fantasma.
Certo, Os outros (2001), de Alejandro Amenábar, já ia pelo mesmo caminho. E Sombras da vida (2017), de David Lowery, também. Mas Presença tem a pretensão de ir mais longe, pois o próprio formato se submete à ideia da perspectiva de um fantasma. Todo o filme foi rodado com câmera subjetiva, ou seja, com planos que simulam o olhar da presença. E isto não é spoiler, porque já no prólogo fica evidente a proposta estética de Soderbergh: a câmera passeia pela casa vazia, como quem flutuasse por ela, até observar a chegada dos novos moradores. Então, “se esconde” em um armário.
Aí, porém, já começam os problemas do filme. A câmera é subjetiva até deixar de ser; o fantasma testemunha o que é conveniente para a história, em vários momentos acompanhando as discussões da família por meio de planos fechados, para acentuar o drama. Ele também se desloca pela casa como se intuísse que alguma cena importante ocorreria, chegando a ela no exato momento em que a ação tem início. Em suma, a ideia de um ponto de vista permanente não resiste a um roteiro preguiçoso. Ela logo soa como exercício estético vazio, até mesmo prepotente.
E com um agravante: nenhuma das quatro personagens da família observada pela câmera consegue atrair nossa simpatia. Não somos cativados nem pelo drama da jovem Chloe (Callina Liang), que perdeu a amiga e é a única a “sentir” a presença, nem pelos conflitos de seus pais Chris (Chris Sullivan) e Rebecca (Lucy Liu), distantes um do outro, bebendo cada vez mais, parecendo prestes a se separar. Completa o grupo o personagem mais insosso do filme, o outro filho Tyler (Eddy Maday), cuja função é apenas tirar do sério a irmã, os pais e nós, espectadores. A história até ganha algum fôlego quando Ryan (West Mulholland), amigo de Tyler, surge e se aproxima de Chloe, mas o desfecho arruína tudo de vez. Voltarei a ele.
A questão é que há um mistério em Presença, e isso nos mantém presos ao filme. É a armadilha de tantas obras frágeis: mesmo aturando uma série deficiências técnicas, nós queremos saber (e nos odiamos por isso). Queremos saber quem é a tal manifestação que flutua pela casa e vai se revelando a todos. Seria o espírito da amiga morta de Chloe? Seria alguém morto na casa? Seria um espírito bondoso ou malévolo?
A revelação no final escancara ainda mais os problemas de Presença. Descobrimos a identidade do espectro que a tudo acompanha, é verdade, mas a partir dali fica claro também que a coerência interna do filme não deve ser levada a sério. Que os poderes sobrenaturais do fantasma se limitam conforme a história se desenvolve, sem nenhum critério aparente. Também se escancaram outros furos no roteiro, despedaçando-se o próprio embasamento científico do longa — fornecido pela médium que, é claro, em certo momento visita a casa. O fantasma vive o tempo de maneira diferente, fica presa a um loop; mas o tempo da narração em nada indica isso, é absolutamente linear. Além disso, sua capacidade de intervenção na realidade é seletiva — mais uma vez, só ocorre quando convém ao enredo. Não à toa pensei com frequência naquele emoji de palhaço enquanto assistia ao filme.
E Soderbergh ainda guarda uma última “surpresa” para o final. Um movimento de câmera ascendente que não deixa dúvidas a respeito das boas intenções de Presença, de seu caráter redentor, ou mesmo “de cura”, para usarmos um termo mais em voga. Cumprida a tarefa do fantasma, ele agora pode descansar em paz, em um surto espírita capaz de causar inveja aos roteiristas de Nosso lar — e irritação em quem pensou que veria um filme de horror.
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