Em 2021, a coluna que escrevo na GALILEU completou cinco anos. Entre os mais de 50 textos publicados no site, arrisco dizer que nenhum tenha circulado tanto quanto A pouco conhecida tradição da literatura de horror no Brasil. Publicado em abril de 2017, ele foi parar em tudo quanto é canto do país e ainda hoje recebo mensagens a respeito dele.
Na época, escrevi-o com base mais na paixão do que em uma investigação aprofundada sobre o tema — eu ainda estava nos primórdios do meu projeto de pesquisa do doutorado, que trata exatamente de histórias assustadoras no Brasil, e tinha um longo caminho adiante. Agora, ao relê-lo às vésperas de encerrar a escrita da tese, percebo o quão limitado o texto de 2017 se tornou. Então proponho não uma revisão, mas um complemento a ele. Uma leitura conjugada, por assim dizer.
A volta ao tema ficou ainda mais urgente com o recente anúncio de um projeto chamado Tênebra. Trata-se de um site que oferece, para download gratuito, narrativas sinistras de autores e autoras nacionais em domínio público. É resultado do trabalho de uma equipe de pesquisadoras e pesquisadores capitaneados por Júlio França, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e referência nos estudos de literatura gótica no Brasil.
A iniciativa vem se juntar a algumas antologias que buscam clarear os recantos escurecidos de nossa historiografia, como: Páginas de sombra - Contos fantásticos brasileiros (Casa da Palavra, 2003), organizada por Braulio Tavares; As melhores histórias brasileiras de horror (Devir, 2018), organizada por Marcello Simão Branco e Cesar Silva; Medo imortal (DarkSide, 2019), organizada por Romeu Martins; e Páginas perversas: narrativas brasileiras esquecidas (Appris, 2017), organizada pelo próprio Júlio França, por Maria Cristina Batalha e Daniel Augusto P. Silva.
Na apresentação de Tênebra, lemos sobre “narrativas obscuras”, e o termo acaba assumindo um duplo sentido: o site não oferece apenas obras que tangenciam ou abraçam elementos do horror, mas que também são pouco ou nada conhecidas do público. Os motivos para o desconhecimento estão na ponta da língua de fãs de assombros literários no Brasil: o desprezo por grande parte da crítica, o desinteresse de editoras e um certo ranço acadêmico — pois se trataria de “arte menor”.
Certo, estou sendo simplista e talvez injusto, até porque as coisas estão mudando (ainda que aos poucos). Mas projetos como Tênebra têm revelado quantas obras sinistras de qualidade acabam ficando de fora do nosso radar. E não falo apenas de autoras e autores desconhecidos, mas também de grandes nomes que se exercitaram nesse campo. Aquela coluna de 2017 trata de alguns deles: Machado de Assis (com A causa secreta, A vida eterna e Sem olhos, entre outros contos), Aluísio Azevedo (com narrativas como a noveleta Demônios, o conto O impenitente e o romance A mortalha de Alzira) e Graciliano Ramos (com o conto Paulo), por exemplo.
Mas há outros. Euclides da Cunha pode ser mencionado com Judas-Asvero (1909), espécie de ensaio narrativo em que a malhação do Judas, no Sábado de Aleluia, torna-se ao mesmo tempo um violento ritual de expurgo de seringueiros e uma tétrica procissão de bonecos. Já João do Rio se mostra um hábil cronista de assombros urbanos, como provam os contos A peste e O bebê de tarlatana rosa — ambos estão na coletânea Dentro da noite (1911).
Carlos Drummond de Andrade deverá agradar fãs de histórias de fantasmas com o conto Flor, telefone, moça (1951), no qual uma jovem passa a ser atormentada por estranhas ligações telefônicas depois de uma visita ao cemitério. E até Clarice Lispector frequentou paragens sinistras no conto Onde estivestes de noite (1974), sobre uma procissão noturna de pessoas em transe, governadas por uma inquietante figura andrógina.
À prova de Wikipedia
Como se vê, estamos diante de grandes nomes de nossa literatura. Do outro lado, entre desconhecidos e desconhecidas, também encontramos inúmeras narrativas que mereciam algum destaque, mas só em anos recentes o receberam. São ficcionistas à prova de Wikipedia, por assim dizer, como o paulista Moacyr Deabreu. Amigo de Monteiro Lobato, Deabreu trabalhou na editora do criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, onde foi responsável pela publicação de narrativas de mistério de Conan Doyle e Edgar Wallace.
Em 1922, em plena efervescência da Semana de Arte Moderna, publicou a coletânea A casa do pavor, um dos primeiros livros nacionais a revelarem evidente intencionalidade do assombro. O conto Os três círios do Triângulo da Morte, por exemplo, traz um ritual de invocação no coração da capital paulista. A atmosfera de profunda estranheza é um dos destaques dessa pérola, que pode ser encontrada na antologia Contos clássicos de fantasma, das editoras Ex-Machina e Clepsidra, com organização de Alexander Meireles da Silva e Bruno Costa.
Outro exemplo é o também paulista Lindorf França. Poeta e contista, teve vida breve, de apenas 22 anos (nasceu em 1836 e faleceu em 1858), à semelhança de um famoso contemporâneo e conterrâneo seu, Álvares de Azevedo (1831-1851). Inclusive, Noite na taverna repercute no longo conto A confissão do moribundo, de França.
Publicado em três números sequenciais do jornal O Guayaná, no ano de 1856, o relato é composto pela história de vida de um velho em seu leito de morte, contada a um padre. Os excessos, as transgressões e as perversões do personagem aproximam-no dos cruéis narradores da obra de Álvares de Azevedo. O conto A confissão do moribundo pode ser encontrado e baixado no catálogo da Tênebra.
Um último exemplo que menciono aqui, entre muitos outros possíveis, é o pernambucano Zoroastro Pamplona. Há bem poucas informações sobre sua biografia. Sabemos que nasceu em 1838 e faleceu em 1872, e que responde por apenas um livro, Poesias e contos, de 1861. Dois anos antes, publicou na revista Ensaios da Sociedade Brasília o conto Dalzo, curiosa história narrada em terceira pessoa do personagem de mesmo nome. Espécie de herói gótico, Dalzo cavalga durante uma noite de tempestade rumo ao encontro de um amigo e acaba por chegar a um antro de canibais, onde testemunha eventos medonhos.
Questão de anacronismo
Sim, é rico o nosso passado de assombros literários. No entanto, precisamos tomar cuidado com os anacronismos. O horror como categoria estética/literária só se consolidou tempos depois da maioria dos relatos mencionados acima — para se ter uma ideia, O horror sobrenatural na literatura, ensaio seminal de H.P. Lovecraft, foi publicado em 1927; o criticado porém ainda relevante estudo A filosofia do horror - Ou paradoxos do coração, do norte-americano Noël Carroll, data de 1990; e Horror: A literary History, volume fundamental organizado pelo catalão Xavier Aldana Reyes, surge somente em 2016, e sequer teve tradução para o português.
Por isso, passei a trabalhar com a ideia de “imaginário” como uma espécie de antessala do horror no Brasil. Por esse espaço, circulam obras pertencentes a outras categorias literárias que, de alguma forma, contribuíram para organizar a cena para o que viria a seguir. É um olhar retrospectivo o que proponho: o imaginário do horror só se viabilizou porque as obras que o constituem se tornaram valiosas para um conjunto crescente de ficcionistas, público leitor e editoras dedicados ao gênero.
Se hoje temos uma produção brasileira de assombros vibrante e consciente de si, nada mais justo que busquemos as origens desse fenômeno. E graças a iniciativas como Tênebra, esse rico passado está a poucos cliques de distância.
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