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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Além de Drácula: a viagem de um escritor de horror pela Transilvânia



Sighisoara à noite

Quando eu tinha por volta de 14 anos e me perguntavam “o que você quer ser quando crescer?”, respondia na lata: “quero ser diretor de filmes de terror na Romênia”. Diante do espanto causado, eu explicava que adorava tanto os filmes do gênero quanto o país. “Por que o país?”, indagava a pessoa, mais espantada ainda. E eu tentava me justificar dizendo que era por causa de Drácula e de vampiros. Não mentia: de fato tinha me apaixonado pela Romênia, e em especial pela Transilvânia, graças ao clássico de Bram Stoker e à adaptação de Francis Ford Coppola, que havia acabado de sair (1992). Porém, a resposta que eu dava era simplista, só para encerrar a conversa. Porque a minha relação com o lugar era mais complexa.


Sim, obras vampíricas me apresentaram à província histórica que ocupa o centro e parte do norte da Romênia, mas isto foi só o começo. Aos poucos, a Transilvânia se tornou o palco perfeito para os meus devaneios e as minhas fantasias de menino. No final da infância e no começo da adolescência, minha imaginação transbordava de mistérios, monstros, aventuras medievais, batalhas entre cavaleiros e demônios, castelos assombrados, florestas etc. E à medida que eu ia pesquisando, fuçando livros e filmes, a Transilvânia se mostrava o território ideal para situar esse universo íntimo.


“Oscar Nestarezcu”


Entre as obras que marcaram minha investigação pré-adolescente, destaco duas: o livro Em busca de Drácula, de Raymond T. McNally e Radu Florescu, e o filme Subspecies - A geração vamp, de Ted Nicolaou – um dos raros casos de cinema vampírico realizado na Romênia. Lembro-me de ficar absorto tanto pelas fotos do livro quanto pelas cenas do filme, que a todo momento eu pausava no videocassete. 


Meu fascínio pelo país era tamanho que, na Copa do Mundo de 1994, ganhei uma camisa da seleção romena de uma namorada e torci desesperadamente pelo time liderado por Gheorghe Hagi, até hoje uma lenda local. Em avatares e personagens de jogos eletrônicos, eu me batizava como Nestarezcu, uma grafia próxima dos patronímicos romenos; e perdi a conta de quantas histórias com cenários transilvânicos escrevi. O meu primeiro conto publicado, “Olhos vagantes”, se passa em uma floresta na região. Vocês entendem, virou uma obsessão.


Pois bem: quase trinta anos depois, enfim levei meu corpo para onde a minha imaginação já perambulava. Aproveitando uma estadia de seis meses na Espanha para um pós-doutorado na Universidade de Alcalá, resolvi organizar uma viagem à Transilvânia. O que encontrei lá vai muito além de cenários perfeitos para histórias assustadoras – reais ou imaginárias. Por isso, quero compartilhar minhas impressões sobre este pedaço do leste europeu ainda tão pouco conhecido.


Usando Drácula como mapa 


A viagem foi a realização de um sonho, sim, mas também teve um objetivo: retraçar por lá os passos de Jonathan Harker, personagem de Drácula. Harker protagoniza o trecho inicial do romance, meu preferido. É ele o advogado enviado à região para intermediar a aquisição de imóveis na Inglaterra por parte do conde. O pobre rapaz é aprisionado no castelo em meio aos Cárpatos, testemunha horrores e, após escapar, vai parar em um sanatório em Budapeste. 

 

São três os destinos de Harker na Transilvânia: Klausenburg (ou Cluj Napoca), Bistritz (Bistrita) e, por fim, o castelo de Drácula. Posto que este castelo só exista no romance de Stoker, elaborei um roteiro em parte literário, em parte histórico. Voei de Madri até Cluj Napoca e de lá fui para Bistrita. Atravessei o passo Borgo, depois passei por Sighisoara, a cidade onde nasceu Vlad Tepes, o personagem histórico que inspirou a composição do conde ficcional, e concluí em Brasov, quase na fronteira com a Valáquia, outra província histórica do país (onde fica a capital, Bucareste). Fiz todo o trajeto não de trem ou carruagens, como Harker, mas de carro, pois o tempo era escasso.


No caminho entre Cluj e Bistrita, de cerca de uma hora e meia, o tão esperado encontro: em meio às brumas do anoitecer precoce (pois estávamos perto do inverno), florestas escuras por todos os lados. A estrada sinuosa atravessa inúmeros vilarejos e a silhueta de igrejas góticas e ortodoxas não nos deixa esquecer da antiguidade de tudo. A religião predominante na Romênia é o cristianismo ortodoxo, e as cúpulas esféricas já dão uma atmosfera incomum às paisagens. 



Igreja ortodoxa do século 13 em Bistrita


Outro destaque nas paisagens da região são as igrejas fortificadas, construídas de forma mais robusta para servirem de defesa em tempos de guerra. Ao todo, são 150 na Transilvânia, a maioria datando dos séculos 13 e 14, e o conjunto se tornou patrimônio mundial da Unesco. 


Jonathan Harker, em Bistrita, hospeda-se na estalagem Coroa de Ouro, cuja proprietária lhe entrega um crucifixo que mais tarde salvará sua vida. Já eu fiquei no hotel Coroana de Aur (Coroa de Ouro, em romeno), mas não recebi amuleto algum. Talvez porque fosse feriado: cheguei lá em primeiro de dezembro, Dia da Grande União Romena. Caminhando pelas arborizadas ruas da cidade à noite, me deparei com um desfile de soldados cantando o hino –  e carregando tochas. Não sei se idealizo demais, mas mesmo algo tão pragmático veio recoberto de certa aura misteriosa.


Em busca de Vlad


De Bistrita dirigi até a passagem Tihuta, o nome local para o passo Borgo, onde Harker embarca em uma carruagem que o levará até o castelo de Drácula. Não se trata de um desfiladeiro, como no romance de Stoker, mas de um extenso vale entre montanhas baixas dos Cárpatos, a imensa cordilheira que vai da República Tcheca até a Romênia. Neste ponto, me despedi de Harker e parti em busca de Vlad Tepes rumo a Sighisoara.


Nas duas horas e meia de viagem até a pequena cidade, o desafio é manter os olhos na estrada. Os Cárpatos se tornam mais imponentes e ameaçadores. Mesmo ao meio-dia, a névoa paira densa sobre a multidão de esqueletos de árvores, corvos crocitam e ursos estão à espreita – o país tem a maior população de ursos pardos da Europa. Depois do anoitecer, o crocitar dá lugar a uivos, e não apenas de cães. Um sonho – ou pesadelo, dependendo do ponto de vista. 


Sighisoara é conhecida pela cidadela no topo de um monte, cercada por muros. O lugar oferece um bom resumo da história geral da Transilvânia: foi fundado no século 11 por saxões; passou ao domínio do reinado húngaro; no século 16, o império otomano assumiu o controle e o deteve até o século seguinte, quando a região passou às mãos dos Habsburgos, nas quais permaneceu até o começo do século 20, a seguir sendo incorporada pela Romênia.



Estátua de Vlad Tepes em Sighisoara


A contextualização é necessária para que se entenda a riqueza e a complexidade da região, da qual, do ponto de vista romeno, Vlad Tepes é só uma pequena parte. Pequena, porém importante: voivoda (governante) da Valáquia no século 15, ele exerceu papel determinante na defesa da região contra o império otomano. Embora seja conhecido mundo afora pelos castigos cruéis infligidos a inimigos derrotados, o empalamento sendo o mais famoso, sua figura não se restringe a isso – o que explica o embaraço, ou mesmo a frieza, com que romenos recebem a empolgação de estrangeiros em busca dele (meu caso). 


Castelo do Drácula na marra


A meu ver, há um ponto positivo neste distanciamento: é acanhada a exploração turística tanto do personagem literário quanto da figura histórica. Acho positivo pois, assim, conhecemos os lugares sem muitos direcionamentos, sem camadas que eventualmente distorçam sua essência. A exceção a isso é o Castelo Bran, perto de Brasov, meu último destino na Transilvânia. 


Como o castelo descrito por Stoker não existe, e como o castelo de Poenari, o verdadeiro lar de Vlad Tepes, hoje está em ruínas, Bran virou o “castelo de Drácula” na marra. Erguido no topo de um promontório no distrito de Bran, a 25 km de Brasov, tem salas temáticas que pretendem assustar, mas que resultam kitsch, ou mesmo constrangedoras. São um pontinho negativo deste lugar por si só magnífico, que data do século 13 e foi a residência da rainha Maria, a última rainha consorte romena antes da revolução socialista. E com a pátina da neve que caía durante minha visita, fica ainda mais evocativo:



Castelo Bran


Brasov, por sua vez, é outro tesouro da Transilvânia. A cidade está encostada nos Cárpatos e até o século 18 foi o local mais importante da região. Lá está a Igreja Negra, uma catedral gótica do século 15 que tem esse nome por conta de um incêndio que destruiu sua parte interna e escureceu sua estrutura exterior. A igreja sempre teve imensa importância para os religiosos locais, pois sua localização a leste faz com que marque posição nos limites do mundo cristão. 


Na cidade, chama a atenção a grandiosidade decadente, o espectro de uma belle époque há muito encerrada. De certa forma, a qualidade fantasmagórica do centro histórico condiz com a cordilheira coberta por névoas ao redor. Aqui não há registros da passagem de Vlad Tepes – à exceção de uma breve estadia no castelo Bran – nem do Drácula de Bram Stoker. Mas o Museu da História de Brasov, situado na ampla praça que é o coração da cidade, mais uma vez nos mostra que há muito mais a se encontrar na região além desses rastros.  



Brasov e os Cárpatos enevoados ao fundo

Romênia, república socialista


De Brasov, voltei a Cluj Napoca, de onde retornaria a Madri. Cluj é a maior cidade da Transilvânia, conhecida pelas universidades e indústrias que abriga. Aqui, nosso encontro é com a história recente da Romênia. A imponência de alguns prédios públicos e as estátuas gigantescas exaltando figuras locais nos lembram de que estamos em um país que, de 1965 até 1989, fez parte da cortina de ferro, sob as asas da União Soviética. 



Cluj Napoca


Foi mais uma tonalidade aplicada ao fascinante quadro da Transilvânia. Enquanto voltava para a Espanha, refleti sobre quantos séculos percorri em seis dias. Sobre quantos povos encontrei. Fui para a Romênia em busca de uma abstração, uma quimera em parte literária, em parte histórica e em parte imaginária. Encontrei-a, sim, nas paisagens, na atmosfera, no crocitar dos corvos e nos uivos dos lobos; adivinhei-a oculta nas brumas distantes. Mas também consegui ouvir sua voz, a voz da terra, dizendo que nosso encontro era só o começo.


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