Em junho de 2024, aconteceu o centenário da morte de Franz Kafka (1883 - 1924). Sempre tive receio de me aproximar criticamente do autor tcheco, cujo projeto literário considero complexo, cheio de enigmas, metáforas deslocadas, alegorias esvaziadas e procedimentos de alienação. Até que fui folhear o volume Kafka Essencial (Cia. das Letras) e me ocorreu algo: alguns contos dele estão nas vizinhanças do horror. Isto é, jamais pretendem pertencer ao gênero, mas mesmo assim dialogam com ele. E são perturbadores de uma maneira bem singular, porque muitos personagens kafkianos parecem autômatos. Desprovidos de vontade própria, não só são incapazes de intervir nas ocorrências insólitas de suas vidas, como mal conseguem se horrorizar com elas.
É o caso de Gregor Samsa, o protagonista de "A metamorfose". Não é a transformação dele em um inseto que impressiona, mas sim o fato de ele não se chocar com isso. Um dos grandes estudiosos de Kafka, o filósofo alemão Günther Anders, assim resumiu a questão: “o espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém".
Nós, como leitores, estaríamos sujeitos a uma perturbação de natureza dupla: em um primeiro momento, e em menor dimensão, temos o incômodo causado por imagens graficamente carregadas, como o homem transformado em um inseto gigante ou a máquina a inscrever na pele de condenados a pena a que estão sujeitos, de “Na colônia penal”. Mas pior é a percepção de que qualquer extrapolação — seja de violência, seja da vida ordinária —, na ficção kafkiana, é banalizada. A perturbação transcende as histórias e se torna generalizada. O silêncio dos personagens frente ao horror é igual ao nosso depois de um pesadelo que, longe de se afastar da realidade e de nossas experiências cotidianas, revela-as de maneira mais definitiva.
Assim ficamos diante do conto “O abutre”. Provavelmente escrito no começo de novembro de 1920, o texto foi assim batizado pelo amigo e testamenteiro de Kafka, Max Brod. É um conto brevíssimo, de apenas uma página, e tem o formato de uma parábola — ainda que sem qualquer conteúdo moral ou mensagem cautelar. A narração acontece em primeira pessoa, um homem cujos pés são incessantemente bicados por um abutre. “Ele já havia estraçalhado botas e meias e agora bicava os pés propriamente”, relata, com inquietante frieza, a própria vítima da ave. Assim ele se uniria ao Prometeu da mitologia grega, que, após afrontar os deuses, foi acorrentado a um rochedo e tem o fígado incessantemente devorado por águias.
Em “O abutre”, porém, não há húbris ou outra justificativa para o castigo. O narrador, após entender que resistir à ave seria inútil, só aceita passivamente a imolação. Assim ele se explica ao senhor que, passando por ali, pergunta-lhe por que tolera um tal suplício: “ele chegou e começou a bicar, naturalmente eu quis enxotá-lo, tentei até enforcá-lo, mas um animal desses tem muita força, ele também queria saltar no meu rosto, aí eu preferi sacrificar-lhe os pés. Agora, eles estão quase despedaçados”.
O senhor incentiva o narrador a reagir, oferecendo-se para buscar uma arma e atirar na ave. O pobre homem aceita. Quando a testemunha se retira, o abutre, que “tinha entendido tudo”, levanta voo para ganhar ímpeto e, num rasante, enfia o bico com toda a força na boca do narrador, que tomba no chão. A imagem final do conto é sangrenta: “Ao cair para trás senti, liberto, como ele se afogava sem salvação no meu sangue, que enchia todas as profundezas e inundava todas as margens”.
Na introdução de "Kafka Essencial", Modesto Carone, grande estudioso e tradutor de Kafka, nos lembra de que o conto pode conter traços biográficos: o abutre seria a representação da tuberculose diagnosticada pouco antes de Kafka redigir este conto, fazendo a vítima engasgar e morrer com o próprio sangue — por si só uma especulação arrepiante. Carone também chama a atenção para a possibilidade de estarmos diante de um narrador defunto, posto que o animal seja uma ave carniceira — e não predatória, como as águias da mitologia. Por dedução, a voz narrativa viria de um cadáver, ainda que o abutre se comporte como uma ave de rapina. O fato de ele bicar os pés, destruindo a parte do corpo que liga o homem à terra, pode reforçar essa ideia.
Como se vê, podemos identificar traços do horror no conto. A imagem grotesca de um abutre despedaçando lentamente os pés de uma pessoa, o sofrimento expressivo, ainda que resignado, e a cena final, repulsiva, aproximam a narrativa do gênero, sem servirem para nele confiná-la. A passividade com que o homem relata seu martírio o aproxima de Gregor Samsa na naturalidade diante de ocorrências tremendas. Também o estabelece como um narrador de visão parcial, incapaz de enxergar a totalidade daquele universo ficcional. Seria, como aponta Modesto Carone, um narrador insciente, central para o projeto literário de Kafka; está enredado em seu próprio sofrimento e carece de um outro ponto de vista para enxergar o óbvio (livrar-se da ave com um disparo). Assim, ele só oferece a clareza de sua própria alienação. É a consciência borrada, fora de foco, como um mecanismo de defesa para a sobrevivência em um mundo cuja hostilidade e a violência transpuseram todos os limites.
Ora, qualquer pessoa com miopia pode assegurar: sem óculos ou lentes corretoras, a visão se borra e o mundo se apresenta de forma distorcida, imprecisa. Ou mesmo inquietante, pois os objetos ao redor são quase aqueles aos quais se está acostumado. Tornam-se menos conhecidos, menos familiares, portanto mais assustadores. A ficção de Kafka tem esse poder deformador por representar o que Walter Benjamin chamou de uma doença da tradição, como sintoma de um mundo no qual a sabedoria deixou de ser um aspecto narrativo da verdade, um filtro.
A vítima, a ave carniceira e a testemunha constituem esse projeto; são consequências da certeza de um fracasso final em um mundo sem salvação. Exprimem o niilismo desesperado de Kafka, que chocou quando sua obra se difundiu e continua perturbando novas gerações. Este desnorteamento também participa do campo semântico do horror — termo que, além de qualificar um gênero estético, exprime melhor do que qualquer outro a experiência de se estar vivo.
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