top of page
Buscar
Foto do escritorOscar Nestarez

"A cabeça cortada de Dona Justa" e o horror que vem da nossa história


A cabeça cortada de Dona Justa, de Rosa Amanda Strausz - Rocco/Divulgação

O passado escravocrata brasileiro não cessa de nos perturbar. É uma sombra que, em vez de retroceder, apenas muda de forma, como testemunhamos nas mazelas ainda presentes em nossa sociedade e nos episódios de racismo que todos os dias chegam a nós.

Desde sempre, essa nódoa é incorporada à obra de escritoras e escritores dos mais diversos movimentos literários. Tênebra - narrativas brasileiras de horror [1839-1899] (Fósforo), antologia que organizei ao lado do professor Júlio França, é prova disso: histórias como “Conto fantástico” (1861), de Américo Lobo, e “Consciência tranquila” (1897), de Cruz e Sousa, têm a escravidão como motivo central, e suas consequências se convertem na fonte do mais puro horror. Hoje, nosso sangrento passado continua inspirando ficcionistas do arrepio. Um exemplo é o romance Kiumba, publicado de forma independente em 2022 pelo paulista Everaldo Rodrigues. Nesta narrativa histórica encenada nos tempos do Estado Novo de Getúlio Vargas, Bento, fotógrafo negro de um importante jornal carioca, luta contra antagonistas bem conhecidos: a instabilidade política, o repúdio de uma sociedade à cor de sua pele e o racismo estrutural que já se instalava no cotidiano da época. Há também ameaças de origem sobrenatural, como espectros e imagens terríveis ligados a uma tragédia não muito distante no tempo, e que vai determinar os rumos dessa instigante história. Terra encharcada de sangue Outro exemplo contemporâneo é A cabeça cortada de Dona Justa (Rocco), publicado também em 2022 pela carioca Rosa Amanda Strausz. Neste romance histórico, o recorte temporal é mais amplo, abrangendo desde o período das sesmarias – isto é, no início do século 18 – e se concluindo no final do século 20. No centro da história, está o território: uma fazenda no norte do estado do Rio de Janeiro.

Encharcada de sangue de escravizados e demarcada por tragédias, a região é o verdadeiro locus horribilis (lugar horrível, em latim) das histórias góticas. São, nas palavras do pesquisador Júlio França, espaços narrativos opressivos, que afetam, quando não determinam, o caráter e as ações das personagens que lá vivem. São os castelos amaldiçoados dos romances ingleses do século 18, as casas assombradas do século 19 em diante e, claro, as fazendas brasileiras cuja riqueza era extraída à base do sofrimento de escravizados.

Logo no início de A cabeça cortada de Dona Justa, o locus horribilis aparece na vida de Margarete Dias, ou Margô, uma mulher de 72 anos em quem “tudo é feio, mirrado e triste”. Levando uma vida ordinária na capital carioca, certo dia ela recebe a escritura de uma tal Fazenda Policarpo, da qual descobre ser herdeira por pertencer à família do homem que batizou o lugar. No entanto, em vez de felicidade, ela sente uma “aflição inexplicável”. Margô decide visitar imediatamente a fazenda, onde encontra um casarão em ruínas e, por todos os lados do imenso terreno, mato alto e abandono. Na ocasião, ela conhece Bento, um rapaz que vive no local com sua mãe de criação, Dona Cria. As personagens em cena são representantes do conflito que conduzirá a narrativa, e que se resume à posse da fazenda. De um lado, descendentes do vilão da história, Policarpo Dias, que surgiu como administrador do lugar e que, por meio de um golpe macabro, tornou-se o proprietário. De outro, descendentes da mulher negra, escrava liberta e benzedeira Justiniana Silvério – a Dona Justa do título. De um lado, crueldade e ganância; do outro, saberes ancestrais e poderes sobrenaturais. De sesmaria a fazenda No conflito central do romance, ressoa uma pergunta objetiva: de quem é a terra? Por meio de saltos temporais, Strausz vai apresentando a história da fazenda, que se mistura à do próprio país. Tudo tem início com uma transação no século 18 – da qual, cabe dizer, não participou nenhum povo originário brasileiro.

Na época, a então gigantesca porção de terra nativa foi doada como sesmaria por um nobre português a um cirurgião-barbeiro francês, Armand Maurois. É o “mossiê”, companheiro de Dona Justa, com quem cura moléstias dos abastados da colônia. Ele pretende plantar café na região, mas não tem conhecimento para isso e fracassa por vezes seguidas. A história só muda com a chegada de Policarpo, que assume a administração do lugar e o transforma em uma fazenda altamente produtiva.

O problema é o custo desse trabalho. Centenas de escravizados são trazidos para as plantações. São tratados com desmedida brutalidade por Policarpo, e muitos morrem ou são assassinados. O sangue derramado lança o lugar numa maldição, que não torna a terra improdutiva, mas faz chover de forma incessante e espalha serpentes por todos os lados. Com a morte de Mossiê, Dona Justa se torna a única proprietária da fazenda – até que Policarpo corta-lhe a cabeça e sequestra uma filha, com quem se casa à força, para tomar posse do lugar. É a cabeça de Dona Justa, lançada em uma espécie de caverna às margens do rio que passa pela fazenda, que conta a medonha história do local; revela-se narradora defunta. Horrores visuais e factuais Os horrores do romance de Strausz são visuais, com algumas cenas marcantes e bem elaboradas, mas também factuais, pois nunca perdemos de vista o que causa a ruína do lugar e de todos os que por ele passam. É a dominação pela violência, a lei do mais forte, ao menos no que toca às coisas deste mundo. Porque o acerto de contas só vem pela via do sobrenatural, em um desfecho que restabelece a terra aos descendentes de Dona Justa e encerra a maldição.

O destino da fazenda Policarpo, no entanto, é sintomático sobre os tempos que correm: vira hotel fazenda. Como no século 18, a terra continua submetida à mercantilização. A resposta oferecida por Strausz para o conflito da posse soaria sarcástica, mas não há indícios dessa intenção no desenlace da história. A propósito, o desfecho padece de alguns problemas. Não deixa de ser previsível e um tanto disperso – a condução, firme no geral, perde-se em alguns relatos paralelos que pouco acrescentam à trama central. Nota-se, também, um desperdício de palavras para explicar o que já está claro, e em alguns trechos Strausz parece hesitar a respeito da história que conta – problemas perceptíveis ao longo do restante narrativa. No entanto, embora diminuam a força do romance, essas deficiências não são suficientes para lhe roubar o brilho.

Há lirismo na prosa da autora, e há, acima de tudo, a consciência de que, para encenar o horror, o horror legítimo, não basta apenas cutucar as feridas históricas em questão; é preciso abri-las, enfiar nelas os dedos e remexer a carne – que, afinal, é da mesma cor em todos nós.

71 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page