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  • Foto do escritorOscar Nestarez

“A beleza do cinema de horror brasileiro é não se preocupar em imitar”


Imagem do filme Morto não fala (Créditos: divulgação)

Uma entrevista com o crítico Carlos Primati sobre a atual "Era de Ouro" da produção cinematográfica de horror brasileira


As histórias de horror estão, definitivamente, em destaque. Dos livros, esta coluna sempre se ocupou; já são quase quarenta textos dedicados à literatura sombria, dos primórdios até alguns fenômenos recentes (tanto de venda como crítica), passando por entrevistas, resenhas, listas e muito mais. Mas há outra evidência de que este seja o melhor momento para as narrativas de horror em muito tempo: o cinema nacional do gênero.


Nos meses de outubro e novembro de 2019, cinco títulos brasileiros de horror chegaram e chegarão às telonas do país. Morto Não Fala, do gaúcho Dennison Ramalho, estreia após uma bem-sucedida carreira internacional. Outros filmes, como O Clube dos Canibais, do cearense Guto Parente, e A Noite Amarela, do paraibano Ramon Porto Mota, também vêm recebendo críticas entusiasmadas.


Para entendermos melhor o contexto e as nuances desta época tão vibrante, conversamos com o crítico paulista Carlos Primati. Que sabe muito bem do que está falando: editor, tradutor literário e pesquisador do cinema fantástico, ele se especializou no horror brasileiro e acompanha de perto a produção nacional desde meados dos anos 2000. Além disso, é curador de festivais de horror pelo país — como o Rio Fantastik Festival, que só passa filmes nacionais. Confira a entrevista completa a seguir:


Como você avalia o cenário atual da produção cinematográfica de horror no Brasil? Podemos afirmar que o momento seja mesmo favorável?

Eu venho acompanhando a produção nacional de horror no cinema de maneira sistemática desde o comecinho dos anos 2000, quando os filmes surgiam esporadicamente e, às vezes, de modo muito vagamente relacionado ao horror, em termos de diálogo com o público aficionado ou mesmo na convicção em abraçar suas regras (Gêmeas, Bellini e o Demônio, Nina etc.).


A partir de 2008, com o lançamento de Encarnação do Demônio (último filme de José Mojica Marins, encerrando a trilogia de Zé do Caixão, filmado em 35 milímetros e com orçamento em torno de R$ 2 milhões, o maior da carreira do cineasta) e Mangue Negro (a estreia em longa-metragem do capixaba Rodrigo Aragão, um filme de zumbi rodado em vídeo, de recursos precários, mas muito criativo e inventivo), a produção nacional no gênero começou a traçar um cenário mais claramente associado com o horror, embora em geral arredio às regras mais tradicionais do horror canônico.

Particularmente, não apenas os vejo como cinema de horror, como também entendo que representam o que de melhor há para se tirar do gênero, que é a capacidade de se reinventar, de refletir, avançar, propor novas saídas e soluções. É o que por algum tempo novos críticos e aficionados chamaram de "pós-horror" (termo decorrente, em parte, do surgimento de filmes estrangeiros como A Bruxa, Corrente do Mal, Demônio de Neon e Personal Shopper), por incapacidade de simplesmente associar tais obras ao vasto e quase inesgotável escopo do "horror".


Mas, paradoxalmente, essa confusão acaba beneficiando uma compreensão do cenário contemporâneo no Brasil: partindo da hipótese de que o horror possa ir além e ser "pós", é mais fácil entender e assimilar filmes de diretores como Juliana Rojas e Marco Dutra (Trabalhar Cansa, As Boas Maneiras), Guto Parente (A Misteriosa Morte de Pérola, O Clube dos Canibais), Marina Meliande (Mormaço) e muitos, muitos outros.


Eu acredito que o cenário atual é a época mais prolífica, em quantidade, qualidade e diversidade de propostas, do horror no cinema brasileiro ao longo de toda a trajetória do gênero nas telas, desde o surgimento de Zé do Caixão, na metade dos anos 1960, passando pelo experimentalismo udigrúdi, o horror existencialista, a pornochanchada de horror e as comédias e paródias de terror dos anos 1970 e 80, e o cinema da Retomada, dos anos 1990 e 2000.


De certa maneira, todas essas propostas se mesclam e coexistem no panorama atual: há o horror tradicional e explícito (Condado Macabro, O Diabo Mora Aqui, Morto Não Fala), o experimental (O Fim da Picada), o existencialista (A Noite Amarela), a pornochanchada (O Clube dos Canibais), comédias de fantasmas ou paródias sanguinolentas (Exterminadores do Além contra A Loira do Banheiro) etc. É um cenário muito promissor, e o momento se mostra favorável — apesar da dificuldade de ocupação das telas por parte dos filmes brasileiros—  porque existe uma visibilidade maior e uma conexão entre realizadores e cinéfilos (facilitado pelas redes sociais), e possibilitado pela presença desses filmes em plataformas digitais (streaming, VOD etc.).

Para o meu gosto pessoal — que é pelo filme original, inovador, que ousa experimentar na narrativa, no formato, na construção, no desenvolvimento e na conclusão —, há muitos filmes realmente instigantes, provocativos. Um parâmetro interessante é observar a carreira desses filmes em festivais estrangeiros, onde obras como As Boas Maneiras, O Animal Cordial, Morto Não Fala, Mal Nosso, Mate-me Por Favor, A Sombra do Pai, O Clube dos Canibais, Sem Seu Sangue e tantos outros, tiveram um desempenho notável e ganharam muitos prêmios.


Estou tão imerso nesse cenário que, em algumas ocasiões, me pego sentindo que o horror brasileiro é o mais interessante do mundo; se não é o melhor (uma afirmação que seria subjetiva, de todo modo), está entre os melhores, justamente por ter muitos filmes que acabam se destacando — coisa que só podemos ver em cenários com filmografias prolíficas, como os cinemas francês, espanhol e asiático, por exemplo. Existe também um claro e evidente interesse do mercado internacional pelo nosso cinema de gênero, mais do que em qualquer outra época, materializado nos inúmeros lançamentos no mercado externo.

Hollywood pratica um cinema assumidamente comercial, com regras e fórmulas bem definidas, inclusive quanto ao público-alvo e à estratégia de divulgação, hoje em dia mais do que nunca. Existe uma clara proposta de entregar ao espectador um produto exatamente como é esperado por ele — isso revela, em parte, uma pré-disposição do consumidor atual de optar pelo “mais do mesmo”, o que podemos exemplificar pela enorme quantidade de séries e minisséries consumidas vorazmente, e por um cinema de gênero que em sua absoluta maioria é formado por sagas e universos conectados, em continuações, remakes, prequels, reboots (Invocação do Mal, Halloween, Cemitério Maldito, Brinquedo Assassino, It: A Coisa, Jogos Mortais etc.).


Os filmes brasileiros, em sua imensa maioria, são obras originais. Em alguns casos, adaptam textos previamente publicados (um conto ou um romance), mas também não necessariamente um material de grande alcance fora de determinados nichos (os livros do Lourenço Mutarelli, por exemplo). Isso já exige do público uma certa entrega ao desconhecido e ao imprevisível que tem se mostrado oposto ao comportamento padrão dos espectadores; por outro lado, é um fator diferencial que estabelece o filme de gênero no Brasil como "cinema autoral", um paradoxo por si só, partindo do pressuposto que o gênero implica repetição de elementos e a supressão de individualidade, enquanto o que vemos em grande parte desses filmes é a reinvenção e a redefinição desses elementos.

Outra característica notável de grande parte (dos melhores) filmes brasileiros do gênero é evitar uma abordagem maniqueísta e simplória, que dê respostas concretas a tudo. Em muitos casos, qualquer noção de final feliz é eliminada, resultando em filmes com desfechos perturbadores, que podemos considerar uma das soluções mais instigantes do horror, mas que em muitos casos desagrada a um público mais padrão, acostumado com resoluções conformadas (finais felizes) encontradas na vertente comercial. Em outras palavras, é um público que não gosta de sair do cinema incomodado.


Você costuma comentar que a maior dificuldade enfrentada pelos filmes de horror nacionais é o próprio público do gênero. A quais razões você atribui essa postura? Como enfrentá-la?

O horror é um gênero extremamente popular, o que pode ser comprovado com uma simples análise dos números de espectadores para lançamentos estrangeiros recentes (as cinesséries Invocação do Mal e seus derivados, Annabelle e A Freira; as adaptações de Stephen King, como Cemitério Maldito e It: A Coisa, entre outros). Nesses casos, não estamos lidando apenas com fãs do gênero, mas com espectadores de cinema em geral.

Porém, existe o nicho dos fanáticos por horror, que consomem praticamente tudo o que se faz dentro do gênero de maneira voraz (antigamente por meio de VHS, depois DVD, trocas entre colecionadores, e, mais recentemente, por serviços de streaming ou compartilhamento de arquivos digitais); um público também que costuma desprezar ou desdenhar da produção mais comercial — aquela de grande visibilidade, enorme bilheteria e muitas vezes com fórmulas mais previsíveis e pouco inovadoras, embora tecnicamente impecável.


Podemos, portanto, supor que o fã de terror busca o diferente, o inovador. Mas o que percebo é que justamente dentro desse nicho começa a resistência aos exemplares nacionais: não raramente me deparo com comentários e considerações depreciativas à produção nacional — em muitos casos, sem que as pessoas sequer tenham visto os filmes — e comentários sobre a incapacidade dos cineastas brasileiros de fazer terror, esse tipo de bobagens. Isso porque embora exista um pensamento de que o horror é um gênero subestimado e pouco apreciado (os números claramente apontam em contrário), o que percebemos é que esse preconceito acontece em relação aos filmes brasileiros, que sofrem resistência por parte desse público.

A única forma que considero eficaz para enfrentar essa barreira é apresentar os filmes às pessoas, contextualizar, provocar, induzir à reflexão, enfatizar a importância da diferença, da originalidade, e principalmente que, mais relevante do que gostar ou não gostar deste ou daquele filme, é entender sua proposta, buscar seu significado, uma vez que, em muitos casos, é ali que reside a identidade do filme de gênero no Brasil (e a nossa identidade cultural). E abandonar de vez a ideia viciada e equivocada de que "brasileiro não sabe fazer cinema" e que "tentaram imitar o terror americano e não deu certo". A beleza do horror brasileiro é não se preocupar em imitar - e o resultado deu muito certo.

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