Alguns anos atrás, escrevi este texto aqui sobre o que chamei de música de horror. Não se tratava de trilhas sonoras — que são acessórias, instrumentos para que uma história seja contada na tela. A coluna abordava, entre outros, o gênero chamado dark ambient, música instrumental que, como o nome indica, se propõe a criar uma ambiência sombria. Para certas sensibilidades, faixas de dark ambient têm o poder de reconfigurar as coisas ao redor, substituindo o mundo cotidiano por paisagens inquietantes, até assustadoras.
Naquela época, me limitei a tratar da audição solitária desse tipo de música, do consumo de sua versão gravada. No último dia 10 de agosto, porém, percebi que faltou abordar outra experiência, igualmente arrebatadora: uma apresentação ao vivo. Na data, aconteceu no VIP Station, em SP, o show do Batushka (que significa “hieromonge”), banda polonesa de metal extremo. Ou de black metal ortodoxo, como o grupo se apresenta nas redes sociais.
Não se trata de dark ambient, ainda que as propostas sejam vizinhas e que muitas vezes os gêneros se misturem. Mas testemunhar o espetáculo encenado pelo Batushka, ou por um dos Batushkas (falarei disso mais à frente), é quase tão fascinante quanto escutar as faixas do disco Heresy, do Lustmord, o projeto do galês Brian Williams que, para mim, é maior nome das perturbações musicais nessas esferas.
“Espetáculo” não é o termo mais preciso; “ritual litúrgico” chega mais perto do que a banda polonesa oferece. Não por acaso seu primeiro álbum, lançado em 2015, leva o nome de Litourgiya e sintetiza a proposta artística do Batushka: reinterpretar a estética da igreja ortodoxa sob a perspectiva do metal extremo.
Esta foi a concepção do multi-instrumentista Krzysztof Drabikowski, idealizador da banda. E as regras estabelecidas por ele foram rígidas. Os integrantes manteriam o anonimato, sempre se apresentando vestidos com mantos sacerdotais, capuzes e os rostos cobertos por um véu negro. As letras seriam escritas em eslavo eclesiástico (a língua litúrgica de cerimônias ortodoxas do leste europeu) e a arte dos discos, assim como a cenografia dos palcos, seguiria a estética das igrejas orientais.
Até aí, nada de tão novo. São muitas as bandas de metal que apostam em paramentos em nome da subversão religiosa — o exemplo atual mais bem sucedido é o grupo sueco Ghost, que lota casas de show mundo afora. De uma geração anterior, os dinamarqueses do Mercyful Fate, liderados pelo performático King Diamond, há décadas transformam shows em missas profanas.
O próprio black metal já nasceu fundamentado na performance. Do “corpse paint” (pintura facial “de cadáver” utilizada pelos músicos) aos cintos e pulseiras de balas, da postura estoica no palco à simbologia anticristã ou pagã, tudo conflui para a criação de uma ambiência pretensamente opressora, ameaçadora. Claro que, quatro décadas depois de surgirem bandas como Venom, Bathory ou Celtic Frost, seguidas por nomes como Mayhem, Darkthrone ou Satyricon, era inevitável que o black metal se tornasse derivativo. A impressão é de que grupos novos já despontam “velhos”, vítimas das regras rígidas de um dos gêneros com menor espaço para invenção dentro do metal. Vez ou outra, porém, surgem novidades capazes de reconfigurar esses espaços, sem descaracterizá-los.
O Batushka é um exemplo. O léxico sonoro do black metal está ali: afinação grave das guitarras — duas de oito cordas, o que “dispensa” o baixo —, riffs repetitivos, nada de solo, bateria acelerada, vocais guturais rasgados. Mas o acréscimo de dois vocalistas de registro barítono (ou seja, de voz super grave), de sinos cerimoniais e de interlúdios de canto coral ortodoxo conferem uma qualidade ainda mais densa ao todo. Soma-se a isso a cenografia bem trabalhada, com ícones por todas as partes, velas, piras, cruzes bizantinas e turíbulos para distribuir incenso, e temos uma ambiência e tanto.
Certo, mas de que forma tudo isso se relaciona ao horror? Além da imagética profana, penso eu que pela própria atmosfera. As boas histórias do gênero jamais prescindem desse recurso. No caso da literatura, a atmosfera se adensa — a floresta escurece, a casa se enche de estranhos ruídos — quando o perigo está próximo. Temos a impressão de uma catástrofe iminente, que pode ou não ser o evento culminante do enredo.
Em um show, essa “promessa” não chega a se cumprir, mas cabe aos artistas e à cenografia sustentá-la da forma que puderem. Alguns são capazes disso com impressionante economia de recursos. Um bom exemplo é o húngaro Attila Csihar, vocalista do Mayhem e eventual parceiro do Sunn O))), expoente do drone metal, vertente que leva a criação atmosférica às últimas consequências. Quem viu Csihar no palco sabe que sua mera presença já é sinônimo de ameaça.
Mas atmosfera também significa transporte. Na literatura, é a reafirmação do pacto ficcional; é quando nos afastamos das coisas mundanas e nos aproximamos do mistério. Em um show — qualquer show —, são as luzes que se apagam. E no caso do Batushka, quando isso acontece, somos transportados para longe no tempo. Vamos aos séculos anteriores ao Grande Cisma que, em 1054, dividiu a Igreja Cristã entre as igrejas Católica Apostólica Romana e Católica Apostólica Ortodoxa. A ruptura foi causada por disputas eclesiásticas — a principal sendo a supremacia do papa, não reconhecida pelos orientais. Os ritos ortodoxos, assim, permanecem os mesmos desde os primórdios do cristianismo. Essa combinação de espiritualidade antiquíssima, liturgia austera e música extrema resulta em uma experiência inquietante, perturbadora, para a qual também contribui o anonimato dos músicos.
Sabemos, no entanto, quem é o líder: o vocalista Bartlomiej Krysiuk. Ele foi o pivô de uma longa disputa judicial com Krzysztof Drabikowski. Segundo consta, em 2015 Drabikowski chamou o então amigo Krysiuk para compor a banda recém-formada. Em 2018, depois de acusar o parceiro de tentar roubar sua criação, Drabikowski o demitiu; os dois começaram a disputar na justiça pelo uso do nome Batushka, e cada um montou seu próprio Batushka. No Brasil, vimos a versão de Krysiuk — mas só soubemos disso porque ele apareceu no palco à paisana, pouco antes do show.
Pendengas à parte, a comunhão entre liturgia ortodoxa e metal extremo foi uma grande ideia. Nos shows a que vou, gosto de observar as expressões da plateia. E no público relativamente pequeno presente ao VIP Station, talvez em consequência da noite gelada, percebi não poucos olhos dilatados pelo assombro — o que, penso, comprova as minhas impressões.
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