A obra mais famosa de Edgar Allan Poe não dá qualquer sinal de perder seu encanto. Desde o anoitecer daquele 29 de janeiro de 1845, quando foram impressos na edição do periódico New York Evening Mirror, os 108 versos do poema narrativo The Raven vêm enfeitiçando e assombrando geração após geração.
Traduzida para todos os idiomas e adaptada para os mais diversos formatos de expressão artística, a história do amante enlutado que indaga uma ave misteriosa sobre sua amada Lenora é constantemente redescoberta, reinterpretada, ressignificada.
Em vida, Poe sequer chegou perto de testemunhar tal êxito. Ainda que tenha causado algum impacto na ocasião de sua publicação, The Raven só começou a transcender as fronteiras do país natal do autor – os Estados Unidos – após a sua morte, sobretudo graças aos esforços de Charles Baudelaire, que o traduziu e recomendou. No entanto, já no ensaio A Filosofia da Composição (1846), Poe demonstrou ter plena consciência das reverberações que a obra poderia causar em seus leitores. Basta lembrarmos da célebre frase “Prefiro começar com a consideração de uma emoção” (ou de um “efeito”, em outras traduções), que está nos preâmbulos do texto.
Mais de três décadas depois, a emoção ou o efeito em questão atingiu em cheio o nosso Machado de Assis. Data de 1883 a sua versão de The Raven para o português, que foi a escolhida para esta nova edição do poema. Datam da mesma época as 26 gravuras que Paul Gustave Doré criou para ilustrar o texto de Poe – e que foram publicadas originalmente em 1884, um ano após a morte do ilustrador francês.
Esta apresentação, no entanto, pretende ater-se às relações entre o poema original e a versão machadiana – pois são inúmeras. Como veremos, Machado, ao verter Poe, parece desafiar os limites entre tradução, apropriação, reescrita ou transcriação. E o faz muito antes de Jorge Luis Borges, André Lefevere, os irmãos Campos ou qualquer outro estudioso debruçar-se sobre este campo literário.
Há quem considere a versão de Machado de Assis inferior a outras traduções para o português. Sobretudo quando comparada à de Fernando Pessoa, talvez a mais conhecida nos países lusófonos. Com efeito, uma rápida análise nos primeiros versos já revela abordagens distintas. Enquanto, no original, temos:
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore…
Pessoa verte-os assim:
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais…
Ao passo que Machado opta por:
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga…
A tônica é a mesma ao longo dos versos restantes, revelando escolhas bastante distintas. Enquanto o poeta português procura reproduzir a métrica exata – o som e o sentido, a mágica do verso de Poe –, o Bruxo do Cosme Velho altera significativamente o ritmo e não verte os padrões sonoros do original. Um julgamento apressado pode condenar a versão de Machado como falha, menor.
No entanto, uma análise mais detida é capaz de revelar que, nela, há uma operação de outra magnitude. Encontramos essa meticulosa investigação no ensaioThe Raven, by Machado de Assis (1988), de autoria de Sergio Luiz Prado Bellei, crítico literário e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
De acordo com Bellei, há “método e propósito” nas subtrações, adições, distanciamentos e demais mudanças engendradas por Machado. Isso porque tais desvios correspondem não somente à intenção de verter um poema para outra língua, mas ao “projeto estético” então vigente do autor brasileiro.
Para entendermos este movimento, faz-se necessário retornarmos à Filosofia da Composição. No texto, Poe explicita as duas ideias centrais de seu poema: o “amante lamentando a morte da amada e o Corvo repetindo continuamente a palavra ‘nevermore’”. Ao escolher “uma criatura não racional capaz de falar” como interlocutora desse amante, Poe cria um mecanismo retórico para trazer à tona as maiores angústias do rapaz. Pois este, ao perceber que a resposta para suas perguntas é sempre “Nevermore”, vai intensificando as questões, lentamente transportando-se para o território da superstição, então do desespero, e então da absoluta angústia.
Na versão de Machado, há uma completa reorganização de forças. Enquanto, no original, o amante enlutado surpreende-se ao ouvir a ave alar (Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly), na tradução, a descoberta é de que a ave entende e responde (Vendo que o pássaro entendia / A pergunta que lhe eu fazia / Fico atônito, embora a resposta que dera…).
Em Poe, o amante é de natureza racional e, no início, parece divertir-se com a entrada da ave em cena (“beguiling my sad face into smiling”); somente aos poucos vai sucumbindo à tortura diante da única resposta para as suas perguntas. Já em Machado, o rapaz logo apresenta-se mais grave e sério. Enquanto, no original, o amante se empenha em adivinhar (“engage in guessing”) o significado do estribilho corvejado, na versão machadiana, ele devaneia, medita, conjectura.
Mas é na própria ave que encontramos os principais contrastes entre o original e a tradução. Em Machado, o Corvo é, desde o início, simbólico, um mensageiro sobrenatural do indizível, enquanto Poe pretendeu que seu corvo assim se revelasse “somente no último verso da última estrofe”. O “stock and store” do original transforma-se em “toda a ciência / Que ele trouxe da convivência / Com algum mestre infeliz e acabrunhado”. Há uma clara mudança de ênfase, e outros exemplos podem dar prova disso.
O corvo de Machado, assim, é peça chave para compreendermos a operação literária em questão, que transcende a tradução. De acordo com Sergio Luiz Prado Bellei, a versão machadiana “tende à universalização por colocar, na cena narrativa, o drama da condição humana” diante da ausência de sentido da existência. Magnificado em tamanho e ênfase, o corvo impõe-se como emblema desse drama, endereçando sua insuportável mensagem não somente ao amante enlutado, mas à humanidade.
Por tudo isso, é possível afirmar que Machado não traduz, mas apropria-se do poema de Poe. A versão para The Raven está em Ocidentais, antologia poética que contém traduções também de obras de Shakespeare e de La Fontaine. Neste conjunto, expressa-se a reconhecida intenção do autor brasileiro em dar cor local à tradição literária ocidental – constituindo-se, assim, uma possível identidade literária nacional, tão cara a ele.
Seja como for, Machado foi tocado pelos efeitos cuidadosamente urdidos por Edgar Allan Poe; e, ao tocar-se, filtrou-os, refratou-os, ampliou-os. Sorte do leitor e da leitora, que têm, diante de si, não um, mas dois Corvos – magnificamente ilustrados por Gustave Doré – com que se deleitar.
Referências bibliográficas:
_ BELLEI, Sérgio Luis Prado. ‘The Raven’, by Machado de Assis. In: Ilha do Desterro. Santa Catarina: UFSC, 1987
_POE, Edgar Allan. A Filosofia da Composição. Trad.: Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
_POE, Edgar Allan. O Corvo. Trad.: Machado de Assis. In: A Filosofia da Composição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
_POE, Edgar Allan. O Corvo. Trad.: Fernando Pessoa. In: A Filosofia da Composição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
_POE, Edgar Allan. The Raven. In: A Filosofia da Composição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
*Este texto é o prefácio para O Corvo: Ilustrado por Gustave Doré, publicado pela editora Clepsidra em 2018. Para adquirir um exemplar, basta clicar aqui.
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