Entre os incontáveis mecanismos de tortura concebidos pela mente humana, poucos se comparam às oubliettes medievais. Assim eram chamadas as pequenas masmorras subterrâneas com formato de uma garrafa, estreitas a ponto de a pessoa não poder deitar ou sentar, e cuja abertura, pequena e gradeada, ficava à altura do piso dos castelos. Eram escavadas próximas à cozinha, para que o aroma da comida as penetrasse. Nelas, os prisioneiros eram lançados e esquecidos (oubliette vem do francês oublier, esquecer).
O cineasta, roteirista e produtor americano Jordan Peele se inspirou nas oubliettes para criar o “lugar afundado” ocupado por Chris Washington (Daniel Kaluuya), o protagonista do filme "Corra!". Para lá, Chris é enviado ao ser hipnotizado por Missy (Catherine Keener), mãe de sua namorada Rose (Allison Williams), durante o aterrorizante final de semana que passa com a família dela. “Por meio da hipnose pré-operatória e da neurocirurgia, pessoas negras eram enviadas para oubliettes psicológicas. Um lugar onde eram destituídas de toda agência e deixadas sozinhas com a própria provação”, afirma Peele, no prefácio de "Quem vai te ouvir – Uma antologia de horror negro".
Ao lado do editor e antologista John Joseph Adams, Peele organizou esta coleção de contos dedicada ao subgênero que o consagrou no cinema — e do qual ele se tornou o maior expoente atual. Publicado nos EUA em outubro de 2023, "Quem vai te ouvir gritar " logo ficou entre os mais vendidos da lista do New York Times. Em junho de 2024, chegou ao Brasil pelas mãos da editora Suma, com tradução de Carolina Candido, Gabriela Araujo, Jim Anotsu e Thaís Britto.
À primeira vista, percebemos como o enquadramento do horror é insuficiente para situar o livro, cuja marca é a mistura de gêneros. Dos 19 contos aqui reunidos, muitos se ancoram na ficção científica, na distopia, na fantasia sombria ou mesmo na fantasia pura, com mundos secundários e mágicos. Esse hibridismo parece ser uma extensão do trabalho do próprio Peele, que, embora firmado do horror, transcende o gênero, com frequência indo na direção da ficção-científica. O longa "Não! Não olhe!"(2022) e a releitura da série "Além da imaginação" (2019) são alguns exemplos.
Ainda assim, a tônica da antologia pretende ser o assombro. “Vejo o terror como uma catarse por meio do entretenimento”, prossegue, no prefácio, o diretor de "Nós". “É um jeito de representar nossas dores e nossos medos mais profundos – para pessoas negras, porém, por muitas décadas isso não foi possível, já que as histórias sequer eram contadas.” O que se entende por horror negro é justamente uma resposta ficcional a esse silenciamento. Referindo-se ao cinema, a pesquisadora Robin Coleman, em seu estudo Horror Noire (2019), explica que filmes de horror negro “têm um foco narrativo adicional que chama a atenção para a identidade racial, nesse caso, a negritude”. Em outras palavras, pessoas negras contando suas próprias histórias assustadoras.
Com tudo isso em mente, Peele e Adams reuniram uma espécie de time dos sonhos do gênero nos EUA. Embora a maioria dos autores e autoras que compõem a antologia seja pouco conhecida no Brasil, há alguns nomes de grande destaque da literatura anglófona, como os multipremiados P. Djèlí Clark, N.K. Jemisin e Tananarive Due, ou as best-sellers Rebecca Roanhorse e Nnedi Okorafor.
O panorama que se revela a partir dessa reunião impressiona pela exuberância imaginativa. A despeito de um início truncado, com alguns contos mais fracos, "Quem vai te ouvir gritar" vai ganhando ímpeto até se abrir para uma paisagem que, em seus melhores momentos, causa maravilhamento e assombro na mesma medida, resultado das fusões entre o horror e a fantasia propostas pelas histórias.
“Lasirén”, da escritora haitiana-estadunidense Erin E. Adams, é um exemplo: nesta fantasia sombria, três irmãs pré-adolescentes se veem condenadas a uma maldição envolvendo uma versão assustadora da sereia no Haiti. Outro caso é “Uma fábula americana”, de Chesya Burke, em que um soldado negro do início do século 19 se refugia do linchamento da Ku Klux Klan em uma casa habitada por entidades da religião iorubá. Já “Olho e dente”, de Rebecca Roanhorse, traz dois irmãos caçadores de entidades sobrenaturais se embrenhando no Texas em busca do monstro que ronda uma casa isolada. E “Esconde-esconde”, de P. Djèlí Clark, um dos destaques do livro, apresenta dois irmãos que devem se proteger da criatura em que sua mãe às vezes se transforma.
Estes e outros contos são marcados pela magia, no geral aceita com naturalidade pelas personagens, em um eloquente gesto de filiação a imaginários de origens africanas. Há, porém, casos de protagonistas que duvidam e se dão mal. Um exemplo é Nwokolo, a narradora de “Casa escura”, de Nnedi Okorafor: uma mulher de origem nigeriana, mas “muito americana… egoísta e individualista”, conforme ouve de um conterrâneo. Ela vai ao país natal para o enterro do pai e volta para os EUA acompanhada por uma assustadora entidade nigeriana, o Ajofia. Essa maldição que atravessa oceanos remete a um ótimo filme de horror negro, "O que ficou para trás (2020), de Remi Weekes, em que um casal sudanês chega à Inglaterra e é atormentado por uma presença sinistra oriunda da África.
Outro aspecto digno de nota é o fato de que nem todos os contos tratam de questões raciais. São histórias nas quais não se identifica um cenário ameaçador para as personagens, e nas quais o sobrenatural não metaforiza riscos reais enfrentados por elas. Além de "Lasirén”, um exemplo desse exercício é “Diabo errante”, de Cadwell Turnbull, em que Freddy, o protagonista, é um homem acostumado a abandonar pessoas e situações – até se deparar com um andarilho sinistro.
Mas "Quem vai te ouvir gritar"" funciona melhor quando as ameaças das duas dimensões – real e fantástica – se entrelaçam, resultando em uma atmosfera pesada e mais favorável à eclosão do horror. Como em “O viajante”, de Tananarive Due, outro ponto alto da antologia. Neste conto que se passa em 1961, em plena vigência das leis Jim Crow de segregação racial, duas irmãs, Patricia e Priscilla, são ativistas dos direitos de pessoas negras e vão viajar para uma manifestação. A jornada de ônibus vai ficando mais e mais perigosa, até que o surgimento de uma figura espectral no meio da estrada muda o rumo das coisas. Já em “Um pássaro canta próximo à árvore entalhada”, Nicole D. Sconiers é hábil ao construir um ambiente de tensão sutil no qual o fantasma de uma mulher negra, morta atropelada por um homem branco, busca vingança no pequeno espaço da estrada em que está condenada a vagar.
Chama a atenção, por último, a quantidade de irmãos na antologia, e de irmãos crianças ou jovens. O que é compreensível: os universos encenados pelos contos são, no geral, duplamente hostis — há as ameaças reais oriundas de um mundo desde sempre desigual e injusto, e há os perigos sobrenaturais, que muitas vezes metaforizam os reais. São cenários perversos, que se tornam um pouco menos perturbadores graças à companhia e à cumplicidade de um irmão.
A reincidência de irmãos “contra tudo e todos” também reflete a desustruturação familiar, mais recorrente no recorte racial proposto pelo livro. Cito novamente o conto “Esconde-esconde”, em que magia e consumo de drogas se misturam para criar um aterrorizante lar disfuncional para o narrador e Jamie, seu irmão caçula. Esta é a oubliette, o lugar afundado que ambos devem enfrentar, entre tantos outros nos quais os personagens de "Quem vai te ouvir gritar" são lançados. Com a diferença de que, aqui, eles encontram recursos para escapar – e se vingar.
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