A década de 2010 foi marcante para o cinema de horror. Em especial a segunda metade, quando surgiram obras interessantíssimas que ajudaram a expandir as possibilidades dos arrepios que tanto amamos. Títulos como A corrente do mal (2014), de David Robert Mitchell, A bruxa (2015), de Robert Eggers, Ao cair da noite (2017), de Trey Edward Shults, e A ghost story (2017), de David Lowery, entre outros, foram celebrados como “renovadores do gênero”. Tudo ia bem até que, em 2017, o jornalista norte-americano Steve Rose decidiu escrever a respeito.
Intitulado “How post-horror movies are taking over cinema” (“Como filmes de pós-horror estão dominando o cinema”), o texto de Rose foi publicado em 2017 no The Guardian e causou grande furor. O autor parte da frustração de fãs de horror na ocasião do lançamento de Ao cair da noite para afirmar que certos filmes já “não jogam com as regras aceitas do gênero” – mencionando a própria obra de Trey Edward Shults como exemplo.
Lanternas na escuridão
Para Steve Rose, mais do que qualquer outra categoria, o horror é governado por códigos e normas consolidados por décadas e décadas de popularidade: “vampiros não têm reflexos; a ‘final girl’ vai vencer no final; os alertas do funcionário do posto de gasolina ou da velha e misteriosa indígena serão ignorados; o mal será finalmente derrotado, ou explicado, mas não de forma a descartar a possibilidade de uma sequência”. Essas normas funcionariam como lanternas em nossa jornada pelo desconhecido.
O pós-horror nasce, afirma Rose, no momento em que certos realizadores resolvem desligar as lanternas. “O que acontece quando você ultrapassa essas regras de aço e vaga em meio à escuridão? Você pode encontrar algo ainda mais assustador. Ou pode encontrar algo que não é de modo algum assustador. É possível que aqui esteja emergindo um novo sub-gênero. Vamos chamá-lo de pós-horror.”
A repercussão do artigo foi grande. Certos críticos adotaram o termo – suspeito eu, devido à possibilidade de, no pós-horror, encontrarem um espaço no qual acomodar filmes de uma categoria que sempre consideraram mais comercial, portanto menos artística. Na esteira desses críticos, boa parte do público também acolheu com simpatia a nova categorização, talvez por motivos semelhantes. Não por acaso outros termos surgiram, como o famigerado “horror elevado”. E, claro, a indústria cinematográfica se aproveitou da pauta: o pós-horror virou uma grande jogada de marketing.
Escopo quase inesgotável
Deixando a questão mercadológica de lado, ocorreu que a reação negativa ao artigo de Rose foi mais intensa. Em especial entre apaixonados pelo horror. Muita gente torceu o nariz por considerar o termo excludente e preconceituoso para com o próprio gênero. Em entrevista concedida em 2019, o crítico e pesquisador Carlos Primati o atribui à “incapacidade de simplesmente associar tais obras ao vasto e quase inesgotável escopo do horror".
Para a pesquisadora, crítica e realizadora Beatriz Saldanha, o pós-horror já nasceu problemático por transmitir uma ideia de superação e uma certa nobreza que os filmes de horror tradicionais não teriam. “Quando publicado, o artigo foi imediatamente rechaçado por pesquisadores e fãs do gênero. Pois basta ter um repertório básico para saber que filmes com as características que Rose aponta como novidades do cinema contemporâneo (pavor existencial, monstros em crise e uma abordagem mais sutil do horror) já existiam muitas décadas atrás”.
O horror que importa
Pensamento semelhante é o de Marcelo Miranda, crítico de cinema, pesquisador e um dos realizadores do podcast Hora do Espanto. Para ele, o pós-horror surge como uma “muleta retórica” cuja função é justificar a relevância do gênero. Destacando as questões sociais abordadas por supostos filmes de pós-horror, Miranda defende que o conceito esteja totalmente fincado em uma noção de horror relevante, legitimada por um público que antes não enxergava, em narrativas assustadoras, tal importância. “Mas é uma muleta retórica vazia, porque, em certa medida, agrega características de filmes que sempre existiram, desde o nascimento do gênero”, afirma. Em suma, a difusão do termo pós-horror indicaria um desconhecimento da própria historiografia do horror, desde o início marcada por rupturas e renovação. Se considerarmos os pressupostos de Steve Rose, encontraremos alguns outros “pós-horrores” ao longo da cronologia do gênero.
Obras desgarradas
Por exemplo: em meados dos anos 1960, os paradigmas do horror moderno já haviam sido bem estabelecidos muitos anos antes pelos filmes de monstros advindos da literatura. Drácula, Frankenstein, O Corcunda de Notre Dame e O Fantasma da Ópera, entre outros, ditavam os rumos do gênero à época. No entanto, já no início da década surgiram obras que escaparam dessas veredas, como Os olhos sem rosto (1960), de Georges Franju, Os inocentes (1961), adaptação de Jack Clayton do clássico A volta do parafuso, A Noite do Terror (1961), de Curtis Harrington, e O que terá acontecido a Baby Jane (1962), de Robert Aldrich.
Há ainda um impasse terminológico: o que viria depois do pós-horror? Quando surgir a nova leva de títulos que confrontarão as regras já estabelecidas pelos “filmes da A24” (a produtora que se tornou sinônimo do sub-gênero), como serão denominados? Pois essa onda virá, é claro. Serão os filmes de “pós-pós horror”? De “pós-horror II, a missão”?
Repercussão na literatura
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Dentro do cinema, o debate sobre pós-horror perdeu força com o tempo. Na literatura, porém, o termo ainda circula com algum fôlego. É utilizado para designar livros que se definem por perturbações e arrepios considerados diferentes daqueles típicos do gênero. Ameaças existenciais, dramas pessoais convertidos em perigos sobrenaturais, fronteiras borradas entre território psicológico e mundo objetivo, questões sociais em primeiro plano, releituras e apropriações de tópicos clássicos do horror… A lista é longa.
Mais de uma vez ouvi algo como “tal livro é bom demais para ser de horror”. Por quê? “Porque não tem monstro”, “não tem psicopata”, “não tem sanguinolência”, “tem pouca violência”, e por aí vai. Pois bem. Dentro dessa percepção, entrariam clássicos como Os salgueiros (1909), de Algernon Blackwood, e A assombração na casa da colina (1959), de Shirley Jackson, entre muitos outros. O argumento "valor comercial vs. valor estético" também é utilizado com frequência, mas dele me ocuparei em um futuro texto.
A meu ver, assim como no cinema, o pós-horror literário tem origem no desconhecimento da historiografia, dos procedimentos, dos temas e, enfim, do próprio horror. É inegável que, de tempos em tempos, um conjunto de narrativas revisem tópicos e ampliem as possibilidades dentro de um dos gêneros mais populares que existem. Mas nada justifica compreender este movimento como uma refundação. Em suma, o pós-horror fez tanto barulho quanto uma porta sendo arrombada; acontece que ela já estava aberta.
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