Na tradição literária, existem personagens que parecem ter nascido para a eternidade. Profundos, complexos, enigmáticos, assustadores e sobretudo fascinantes, vão crescendo conforme o tempo passa, projetando suas sombras sobre os anos, as décadas, os séculos. Por vezes, essas sombras avançam sobre a própria história a que pertencem; com efeito, são personagens que se tornam maiores do que a narrativa de que participam. Esse parece ser o caso de Heathcliff e Catherine Earnshaw, de O Morro dos Ventos Uivantes.
Mas quando o romance foi publicado, no inverno de 1847, nada era grandioso para a inglesa Emily Jane Brontë**. Nascida em julho de 1818, a quinta filha de um vigário e da funcionária de uma escola levava existência discreta. Tinha poucos amigos, era reconhecidamente tímida e reclusa — beirava à misantropia, de acordo com biógrafos. Após algumas tentativas de se tornar professora, frustradas pela saúde frágil, ela retornou à casa da família, em Yorkshire (nordeste do Reino Unido), de onde pouco saiu até falecer, em 1848.
Dois exemplares vendidos
Na literatura, suas investidas também eram acanhadas, até então. Emily publicara apenas um volume de poemas, em 1846, ao lado das irmãs Charlotte e Anne, também escritoras — a primeira é autora de outro clássico, Jane Eyre. As vendas da antologia poética foram pífias: somente dois exemplares comercializados em um ano. As três assinavam suas obras com pseudônimos (quase) masculinos: Currer, Ellis e Acton Bell.
Um ano antes, em 1845, Emily já dava os primeiros passos rumo à grandeza. Pois foi quando ela começou a escrever a obra que, futuramente, seria elevada ao panteão da literatura mundial. O Morro dos Ventos Uivantes foi concluído no ano seguinte e publicado em dois volumes — junto com Agnes Grey, de Anne — em 1847.
Ainda que a publicação tenha vendido razoavelmente bem, a recepção não foi unânime. Os críticos da época reconheciam a intensa força dramática da história de amor e ruína de Heathcliff e Catherine, mas sentiam-se incomodados com certos elementos da composição. Alguns periódicos acusaram a “violência psicológica da obra”, que consideraram excessiva; outros, como um suplemento literário chamado Atlas, apontaram as imagens “chocantes das piores formas de humanidade”.
A atrofia da virtude
O curioso é que, hoje, os grandes triunfos do romance são justamente os elementos que incomodavam os críticos de então. Pois O Morro dos Ventos Uivantes é, antes de tudo, uma história de transformação do caráter humano — para pior. Quase todos os personagens são expostos a alguma forma de sofrimento: vivenciam a inveja, o ciúme, a rejeição e a morte, o que enfraquece suas virtudes. Uma vez despojados dos freios do decoro e do equilíbrio, lançam-se impetuosamente rumo à vingança e à destruição.
Heathcliff é a epítome dessa degradação. “Órfão cigano” cuja adoção pelo senhor Earnshaw (pai de Catherine) dá início à história, ainda pequeno ele é vítima de preconceito na sociedade rural inglesa para a qual é trazido. Sua criação na propriedade de Wuthering Heights se dá em meio a inúmeros conflitos — sobretudo com o irmão postiço Hindley, que, preterido pelo pai, humilha-o sempre que possível, despertando em Heathcliff um furioso e perpétuo desejo de vingança.
É Cathy a única figura capaz de domar a brutalidade e o temperamento do protagonista. No entanto, ela tem consciência do “desnível” cultural e social entre ambos, e decide se casar com o “bom partido” Edgar Linton. Ele é herdeiro de Thrushcross Grange, a propriedade vizinha a Wuthering Heights. Confrontada por Heathcliff após a decisão, Catherine acaba sucumbindo física e mentalmente, até falecer.
A partir daí, a história, que já era marcada pelo drama, mergulha de vez no abismo. No núcleo da trama, abre-se um vórtice de ressentimento que a tudo e todos suga impetuosamente: Hindley e seu filho Hareton, Edgar Linton, sua irmã Isabella, sua filha Catherine; nem os empregados Nellie (narradora de boa parte da trama) e Joseph escapam. O agente é, claro, Heathcliff.
Uma trama à prova de conclusões fáceis
Resumida assim, a história de O Morro dos Ventos Uivantes não parece diferir-se das novelas que tanto sucesso fazem na televisão. No entanto, a grandeza da obra está na verdade dos personagens que a compõem. É compreensível a transformação pela qual cada um passa; são coerentes os desvios de caráter, dadas as experiências vividas. Emily Brontë constrói esses personagens de forma a despertar nossa compaixão por suas motivações, por seus impulsos e até mesmo por suas atitudes condenáveis.
Graças à qualidade e à complexidade dessa construção, o romance resiste, até hoje, a conclusões simples. Não é possível apontar facilmente os heróis e os vilões da trama, uma vez que todos estão sujeitos à inclemência do destino. Heathcliff é mau em essência ou sua fúria vingativa é justificável? Ao decidir por Edgar, Catherine foi caprichosa e insensível, ou ponderada e previdente? Ao humilhar Hareton, Cathy (a filha) é má ou somente imatura? Desafiamos os leitores a encontrarem respostas definitivas para essas perguntas.
Gótica? Romântica? Realista?
A obra resiste, também, a categorizações literárias. Há, na narrativa, uma série de elementos que a vinculam à escola romântica: as convulsões da natureza refletidas na ação humana; o (anti) herói byroniano — confrontador e imoral, mas capaz de demonstrar afeto por alguém; as paixões exacerbadas e violentas; e o individualismo dos personagens, entre outros.
No entanto, os traços góticos são igualmente marcantes. Sobretudo no que se refere aos espaços e à encenação: os cenários são lúgubres, há eventuais fantasmagorias e aparições, a atmosfera é melancólica e, por vezes, macabra, os eventos são atrozes, entre outros. Por outro lado, a veracidade com que o ser humano é apresentado também acomoda a narrativa na antessala do realismo literário, movimento que ganha força a partir da segunda metade do século XIX.
O Morro dos Ventos Uivantes transita entre movimentos literários, sem jamais ancorar-se em um deles — como o verdadeiro clássico que é. Mas essa percepção só veio bem depois, já no século XX, graças à leitura de críticos de renome. Entre eles, Lord David Cecil, importante historiador e acadêmico inglês, que exaltou a força poética e filosófica da história.
Sopro de mistérios
Desde então, a obra só se tornou mais e mais influente. É frequentemente adaptada para o cinema e para o teatro, o que ajuda a apresentá-la às gerações mais recentes. Contribui para isso, também, o amor que Bella Swan, protagonista da saga Crepúsculo, dedica ao livro: é seu preferido.
Hoje, não há dúvidas quanto à grandiosidade de O Morro dos Ventos Uivantes. A dimensão da obra é aquela da complexidade e da profundeza humanas: impossível de se medir, mas sempre fascinante de se contemplar. Tudo isso graças ao exuberante gênio da discreta Emily Brontë, que foi capaz de insuflar mistérios em seus personagens, tornando-os maiores do que épocas e categorias artísticas. Em outras palavras, são personagens que têm o tamanho da vida.
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