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"O dia escuro": coletânea de contos de horror sublima medos, mas hesita ao causá-los

Foto do escritor: Oscar NestarezOscar Nestarez


Arte de divulgação de "O dia escuro" (Companhia das Letras)
Arte de divulgação de "O dia escuro" (Companhia das Letras)

Uma das marcas do horror contemporâneo é a pluralidade. Arrisco dizer que nenhum outro gênero, ao menos dentro do campo do insólito, abriu tanto espaço para vozes que, até pouco tempo atrás, tinham acesso restrito a ele. Durante décadas, o estereótipo do autor de horror seria um homem branco, de classe média ou alta, provavelmente falante de inglês, certamente vindo do norte global. Um ficcionista capaz de imaginar assombros que tocam leitores e leitoras de qualquer parte do mundo, sem dúvida. Por outro lado, é alguém de posição privilegiada, portanto a salvo de horrores bem conhecidos por quem está fora desse contingente hegemônico — de identidades de gênero e grupos étnicos diferentes, por exemplo.


O chamado horror negro é um exemplo dessa corrente atual. Não é de hoje, claro, que pessoas negras concebem histórias capazes de nos aterrorizar — os contos muitas vezes macabros de Cruz e Sousa e João do Rio, expoentes do nosso simbolismo e da nossa crônica, são exemplo disso. Mas só em anos recentes o gênero ganhou mais nomes capazes de reunir, em uma obra ficcional, tanto a imaginação quanto a vivência do horror em um mundo que jamais deixou de ser racista.


Jordan Peele vem na proa desse movimento, estreando com um Oscar pelo roteiro de Corra!, em 2018. Peele também foi um dos organizadores de Quem vai te ouvir gritar, antologia de contos fantásticos e de horror escritos por pessoas negras — muitas das quais são ficcionistas premiadas e responsáveis por bestsellers mundo afora. Publicado nos EUA em outubro de 2023, o livro logo ficou entre os mais vendidos da lista do New York Times. Chegou ao Brasil em junho de 2024, e escrevi sobre ele nesta coluna.


Proposta semelhante tem O dia escuro, antologia de contos lançada em outubro pela Companhia das Letras. Aqui, são mulheres que contam histórias “inquietantes”, como propõe o subtítulo do livro, muitas delas concebidas a partir de vivências em um mundo que tampouco deixou de ser misógino.


As organizadoras Fabiane Secches e Socorro Acioli reuniram vinte nomes proeminentes da literatura brasileira atual com a seguinte provocação, expressa no texto de apresentação: “o que as mulheres contemporâneas pensam quando pensam em terror?” Para inspirá-las, serviram-se de um conto de fato inquietante, “O dedo”, de Lygia Fagundes Telles — autora fluente no idioma do horror, da qual já falamos em diversas colunas. Nesta breve história que abre o conjunto, uma narradora encontra um dedo decepado em uma praia e especula obsessivamente a respeito dele.


A partir daí, em movimento análogo ao da coletânea de Peele, a palavra é passada a quem tem uma vivência perene e profunda de perigos bem reais. Nunca é demais lembrar que o Brasil bateu recorde de feminicídios em 2023, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Outros índices de violência também aumentaram.

“Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade é um conto de terror?”, pergunta-se a narradora de “Neon”, de Carola Saavedra. A própria Saavedra responde, por meio de um exercício metalinguístico. Em seu conto, uma escritora luta para criar um conto assustador e acaba se confundindo com seus próprios personagens. Como artefato de horror, o resultado é inócuo; mas serve à reflexão crítica acerca da própria concepção do arrepio e de seus desafios.


Outras autoras respondem por meio da sublimação de medos bem reais, às vezes explícitos. Os gêmeos de “Roma”, de Andrea del Fuego, que, como Nero, ateiam fogo a tudo que podem, incluindo uma empregada doméstica; Júlia, a protagonista de “Coma antes que esfrie”, de Flavia Stefani, que é negligenciada pelo marido e pelo chefe do marido durante um jantar insólito; ou a narradora de um dos destaques do conjunto, “Chorona”, de Natércia Pontes, uma mãe que, ao conhecer a lenda da llorona (a figura do folclore hispânico que afogou os filhos e vaga, para sempre, chorando), fantasia com o assassinato de suas próprias filhas pequenas.


O medo de ser morta, o desprezo do companheiro e a solidão conjugal, o anseio por se libertar de um papel muitas vezes imposto por um sistema patriarcal: são sentimentos bem conhecidos pelas mulheres, e que, aqui, figuram de diferentes maneiras.

Já alguns contos percorrem caminho inverso, encenando um acerto de contas. É o caso de “São Paulo é como o mundo todo”, de Socorro Acioli, outro ponto alto do livro. Nele, a protagonista, uma nordestina que viaja a trabalho para a capital paulista, compra um casaco em um brechó e começa a agir de maneira estranha, o que a leva a vingar um crime ocorrido anos antes. Com humor bem encadeado e uma estrutura engenhosa, Acioli elabora um grande conto, em que uma possível Macabéa se revela monstruosa — um modus vivendi em uma cidade famosa por monstrificar seus habitantes.


São Paulo figura como trituradora de almas em “Época de milagres”, de Mariana Salomão Carrara, que também se destaca. José, o protagonista, participa de uma disputa selvagem acerca de algo que só descobrimos no desfecho surpreendente. Carrara é habilidosa ao manipular nossa curiosidade e tensionar a narrativa, ao mesmo tempo em que aborda o medo e a desconfiança do outro, e a violência urbana resultante disso.


Nesses contos, porém, parece ser leve a carga de horror. Os efeitos estéticos passam pela inquietação e pelo incômodo, sem dúvida, mas que também às vezes são diluídos — seja pelo formato breve em excesso, seja por experimentos linguísticos que dissipam o impacto, como no já mencionado caso de “Neon” ou de “Aonde tem vento eu vou”, de Trudruá Odorico. Já de “Coração da aurora”, escrito por Ana Rüsche, sobre uma menina com poderes sobrenaturais que sai em busca do pai ausente, emana o perfume e a beleza feroz do nosso litoral. Seu instigante desenvolvimento o situa mais próximo da fantasia.


O horror austero volta a marcar presença em “Paixão de santidade”, de Dia Nobre, sobre uma fanática religiosa que decide substituir o coração roubado de uma escultura de Jesus Cristo. O conto é atmosférico, carregado de sangue e violência, mas sua progressão algo truncada enfraquece a unidade de efeito que, como ensinou Edgar Allan Poe, é imprescindível ao conto do gênero.


Arrepiante de fato é “Gilda”, de Marcela Dantés, meu preferido do conjunto. A história se aproxima da “Chorona” no tema da maternidade monstruosa; aqui, porém, a perspectiva é da filha, que conta que, ao completar dezesseis anos, é levada pela mãe em um passeio. “Era difícil ler a minha mãe”, nos diz. Há apenas vislumbres de uma figura cada vez mais sinistra, que parece conduzir não a filha, mas uma inimiga a um destino atroz. O familiar tornado desconhecido, conceito mapeado por Freud como uma fonte inesgotável de arrepios, e aqui muito bem manuseado.


Retomando a apresentação de Fabiane Secches e Socorro Acioli, O dia escuro explora “uma poética do estranhamento”. Nesse registro será lido, sem dúvida como um reluzente produto literário de nossos tempos atuais. Lamento apenas — e isso diz respeito somente às minhas expectativas — que as convenções do horror não tenham sido mais exploradas. Inclusive para devolver a nós alguns medos que as autoras conhecem como ninguém.

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