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Foto do escritorOscar Nestarez

“Não acredito em limites para a literatura”, diz autora de “Predestinados”


Amanda Orlando (foto: Tissiana Chaves)

No final do século 18, um jovem escritor chamado Matthew Gregory Lewis mexeu com os brios de seu país, a Inglaterra. Seu romance O Monge, publicado pela primeira vez em 1796, trazia a história de Ambrosio, um clérigo exemplar que cai em tentação. Em tentações, na verdade, pois ele se envolve primeiramente com Matilda, uma mulher que se disfarça de noviço para entrar no monastério, e depois em rituais satânicos. O teor sexual e o odor de corrupção que emana do livro contribuíram para seu sucesso, mas também despertaram a ira de moralistas. Em edições posteriores, Lewis se viu obrigado a “revisar” sua própria obra, eliminando as passagens mais polêmicas. A despeito disso, a primeira edição de O Monge prevaleceu e entrou para a história como um dos principais romances góticos de língua inglesa, com cenas de horror cuja força persiste até hoje.


Dois séculos e vinte e sete anos depois, uma escritora brasileira também apostou na conjugação entre hipocrisia religiosa, rituais macabros e alta octanagem sexual. Amanda Orlando, manauense que vive desde a infância no RJ, estreou na ficção com Predestinados (Globo Livros), volumoso romance que traz a saga da família Manfredi em busca de ampliar seu poder na Itália e na Europa do século 17. A temática e as estratégias remetem a O Monge, é verdade, mas a história de Orlando segue um trajeto próprio, dado que a autora investe não apenas no gótico e no horror, mas na ação, com impressionantes cenas de batalha, e nas tramas políticas, com intrincados arranjos que dão densidade à narrativa. Em meio a tudo isso estão personagens históricos tão cativantes quanto assustadores, como os irmãos Domenico, cardeal brilhante e persuasivo, e Luciano, necromante de imenso poder e personalidade sinistra.


"Predestinaos", de Amanda Orlando (Globo Livros) — Foto: Divulgação

Para conhecer melhor o universo e os bastidores do vigoroso romance que é Predestinados, a coluna conversou com Amanda Orlando. Confira:

Atualmente, muito se fala sobre como a literatura de horror pode abordar/problematizar mazelas e problemas sociais contemporâneos, ou recentes. Isto é, o horror que fala do aqui e do agora tem tido mais espaço, em diferentes aspectos. Predestinados, de certa forma, segue em direção oposta, passando-se na Itália do século 17, mas trata de uma questão atemporal: os limites do poder. Como você vê esse deslocamento? É possível identificar atualidade na trama?


Apesar de os personagens e a trama de Predestinados habitarem minha mente há alguns anos, quando eu realmente comecei a escrever, foi premeditadamente uma forma de me descolar da realidade. Estávamos no início da pandemia de covid-19, pessoas morriam às centenas, e logo em seguida aos milhares todos os dias, enquanto negacionistas – tanto governantes quanto anônimos – faziam questão de ignorar a gravidade da situação e a dor e o medo dos que ficavam. Eu tenho uma doença autoimune séria chamada rhufus, uma combinação de lúpus com artrite reumatóide, de forma que fiquei meses e mais meses sem poder colocar os pés para fora de casa enquanto cuidava da minha mãe, que tinha Alzheimer. Assim, eu vi a escrita como uma válvula de escape terapêutica, até, uma fuga de toda essa angústia.


Contudo, mesmo que eu quisesse me deslocar para outros lugares e realidades, optei por um romance de horror histórico, no qual todos os eventos, lugares e personagens, com exceção dos protagonistas, foram reais, pelo fato de poder usar o passado – e o distanciamento por ele oferecido – para discutir questões que acredito serem universais e inexoráveis, muitas delas inerentes à condição humana e que, para mim, particularmente, sempre foram muitos prementes, como os laços que unem uma família, a maternidade compulsória, o papel das mulheres em um mundo feito pelos e para os homens, o que nos torna monstruosos e até onde somos somos capazes de ir para defender aqueles a quem amamos e conseguir o que desejamos.


Dessa forma, acredito que, com nosso olhar contemporâneo, a trama de Predestinados possa gerar muitos debates que continuam a ser de extrema importância.


No romance, há algumas passagens “pesadas”, o que me fez pensar nos limites do horror. Como você vê esses limites? Quão longe podemos ir ao compor uma história?


Nas artes em geral e em especial na literatura, eu acredito que as palavras “limite” e “censura” sejam, na maioria dos casos, sinônimos. Boccaccio ultrapassou os “limites” no século XIV, o Marquês de Sade no século XVIII, o Oscar Wilde e o Flaubert no século XIX, apenas para citar alguns nomes. Eles romperam “limites” de uma forma muito mais intensa e sofreram consequências drásticas por isso.


Depois deles, tudo que escrevemos, mesmo em uma sociedade neo-conservadora e, como é de se esperar desse tipo de orientação, extremamente hipócrita, como a nossa, soa quase como pudico. Não acredito em limites para a literatura, vide que, a meu ver, uma de suas funções é tirar o leitor de sua zona de conforto. As opções de literatura nunca foram tão variadas, de forma que acredito que caiba ao leitor escolher aqueles títulos que se adequem mais a seu gosto e a seu momento.

Predestinados parece dialogar com clássicos do gótico, como O monge, e também com narrativas de fantasia de George R. R. Martin e romances históricos de fantasia e aventura de Bernard Cornwell. Você pode falar um pouco das obras que estavam na sua cabeça ao escrever o livro?


É curioso perceber como Predestinados tem sido comparado a Guerra dos tronos e às Crônicas Saxônicas e de Artur, pois realmente eu não estava mirando nesse público, nem mesmo li essas obras. Porém, depois que Predestinados foi lançado, tenho recebido um feedback muito grande de leitores desses dois autores que também estão curtindo o meu livro. Acho que isso se deve, talvez, a termos o mesmo ponto de partida para nossas tramas. Tanto o Martin quanto o Cornwell usaram como base para sua obra a história da Europa medieval e renascentista. Ainda que eu retrate uma época posterior, certamente compartilhamos muitas fontes.


Contudo, a semente para Predestinados foi “A queda da Casa de Usher”, conto do Poe que assombrou minha mente quando o li pela primeira vez ainda adolescente e que me acompanhou ao longo dos anos. Acredito que venha daí a minha obsessão por sagas familiares e dinastias que lutam para se manter vivas. Outras autoras que preciso citar são a Anne Rice e a Mary Shelley. Ambas foram focos dos meus estudos acadêmicos e trazem visões importantes sobre a criação do monstruoso no terror que levei para a minha obra. Elas humanizaram como poucos seus monstros e construíram narrativas extremamente centradas nos personagens, algo que compartilhei com meus protagonistas. Os Manfredi – assim como seus opositores – são despudoradamente humanos em sua monstruosidade e é isso que os torna, a meus olhos, tão fascinantes.


Como a escritora e a editora conviveram durante a escrita do romance? A experiência como editora te ajudou ou atrapalhou?


Quando comecei a escrever Predestinados, durante a pandemia, meu trabalho como editora era uma das poucas atividades que conseguiam me manter alheia das mazelas que vivíamos, de forma que, quando dei por mim, estava trabalhando 13, 14 horas por dias. Assim, escrever foi também uma forma de conseguir equilibrar o horário de trabalho e o de “lazer”, por assim dizer (até porque escrever é um trabalho – e dá um trabalho danado, diga-se de passagem).


No início, eu não tinha intenção de publicar, por isso escrevi sem freios nem me preocupar com as impressões alheias, o que foi excelente. Porém, à medida que comecei a compartilhar o que já tinha escrito com alguns amigos de dentro e de fora do mercado editorial, eles insistiam de que havia algo ali que talvez merecesse ser publicado. Porém, quando fui realmente convencida disso, já tinha passado as 500 laudas, era tarde demais para mudar qualquer elemento significativo da trama e Predestinados foi lançado com pouquíssimas alterações em seu plot orginal. Sendo assim, no momento da concepção de Predestinados, acredito que minha experiência como editoria tenha ajudado, pois, por mais que eu não tivesse a intenção de publicar, eu já tinha conhecimento de elementos técnicos como organização de capítulos, caracterização de personagens, plot twists e congêneres.


Porém, depois do lançamento, muitas pessoas – muitas sem nem mesmo lerem a obra, vale destacar – questionaram se a mesma só havia sido lançada pelo fato de eu trabalhar na área, sem ter o conhecimento de que, mais do que nunca, o mercado editorial é um business, que envolve dinheiro, investimento e requer resultados. É uma visão pouco romântica, eu sei, mas é a realidade. Em um momento tão competitivo do mercado, são raras as editoras que publicariam uma obra, independentemente do autor, sem acreditar em um retorno comercial.


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