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"Imagens estranhas": pirotecnias não escondem fragilidade literária de romance de Uketsu

  • Foto do escritor: Oscar Nestarez
    Oscar Nestarez
  • 30 de jun.
  • 4 min de leitura

Detalhe da capa do livro de horror 'Imagens estanhas', do escritor japonês Uketsu — Foto: Divulgação
Detalhe da capa do livro de horror 'Imagens estanhas', do escritor japonês Uketsu — Foto: Divulgação

Poucos gêneros são tão transmidiáticos como o horror. O diálogo entre formas artísticas está nas raízes do gênero, na virada do século 19 para o 20: algumas das primeiras obras realizadas no cinema foram adaptações de clássicos como "Frankenstein" e "Drácula". Ao longo do século passado, as transações entre literatura, cinema, quadrinhos, séries e jogos (eletrônicos ou não) de horror só se intensificaram, no geral para benefício de todas as linguagens envolvidas e, em consequência, para fãs do gênero.


A partir do século 21, e em especial na década de 2010, a internet entrou com força nessas relações, de diversas maneiras. As mais eloquentes são as creepypastas, histórias assustadoras de autoria anônima que viralizam a ponto de ganharem o noticiário e serem confundidas com fatos reais – o termo faz referência a “copy+paste”, o famoso “copia + cola”, com “creepy” (assustador) no lugar de “copy”. Não faltam exemplos de invenções que explodiram nas redes, como Slender Man, desafio Momo, Rake ou Baleia Azul.


O anonimato é um ponto central para o sucesso dessas histórias assustadoras. Ao contrário de livros, filmes e quadrinhos, que costumam dar destaque para o nome de seus criadores, a dinâmica da internet favorece a criação quase imediata de lendas — algo que, em períodos anteriores da história, levaria anos (senão séculos) para acontecer. E uma lenda tem aquele aspecto primitivo, que parece tocar nosso âmago e é capaz de nos assombrar pela vida inteira. É uma história de todos e de ninguém, descorporificada.


E é no anonimato, assim como no poder viral das redes, que aposta Uketsu, misteriosa figura japonesa que vem se aventurando pela literatura. Sabemos pouco a seu respeito, além de que se trata de um (ou uma) youtuber cujo canal acumula 1,7 milhão de assinantes. Em seus vídeos (todos em japonês e sem legenda, a não ser a automática gerada pelo YouTube), Uketsu aparece sempre usando uma máscara de papel machê emulando um tipo de boneca, e sua voz é distorcida para que soe como a de uma criança.


O prestígio das redes turbinou suas aventuras literárias: os livros "Strange pictures" e "Strange houses" já somam quase três milhões de exemplares vendidos só no Japão desde 2021 e 2022, as respectivas datas de publicação por lá. Também foram traduzidos para mais de dez idiomas e há planos para adaptações para o cinema. No Brasil, "Casas estranhas" acabou de sair pela Intrínseca, no começo de maio de 2025.


O lançamento foi quase concomitante ao de "Imagens estranhas", que chegou por aqui com maior estardalhaço. O título foi um dos mais disputados na Feira do Livro de Londres em 2024 e é uma aposta da Companhia das Letras para o selo Suma, dedicado a obras de apelo popular, por assim dizer — livros para jovens adultos, thrillers e gêneros relacionados ao fantástico e ao insólito, como fantasia, horror e ficção científica.


Na essência, "Casas estranhas" e "Imagens estranhas" são bem similares: há uma narração simples com farto uso de imagens para apoiá-la. Os dois romances também tratam de mistérios — o primeiro, de uma casa na qual há pontos cegos e misteriosos, e o segundo, de desenhos que aos poucos vão remetendo a assassinatos em série. O trabalho literário de Uketsu, assim, ocuparia um lugar liminal (para usarmos um termo frequentemente aplicado à própria obra da misteriosa figura) entre a narrativa policial e jogos como o clássico "Detetive" ou "Black stories": em todos os casos, precisamos atentar aos mínimos detalhes de texto e imagem para desvendar os enigmas.


A própria estrutura de Imagens estranhas já alude a um jogo. De início nos deparamos com um breve prólogo, uma psicóloga mostrando um desenho feito por uma menina para alunos de psicologia, para que na imagem encontrem indícios de personalidade da criança. A seguir, vêm quatro partes que percebemos se conectarem entre si, as grandes peças do ambicioso quebra-cabeças de Uketsu. Cada uma das seções é dedicada a um desenho, uma “imagem estranha” a partir da qual os mistérios se revelam, e ao final do livro o desenho do prólogo é reapresentado. No cerne do enredo, temos uma narrativa policial aparentemente convencional. É a história da família Konno, permeada por tragédias e mortes, e cercada de personagens que acabam tragados para o turbilhão de Naomi, a protagonista.


O problema é que o romance acaba falhando em seu formato principal, o literário. Isso impede que aproveitemos o potencial lúdico da obra. A narração em terceira pessoa é um tanto simplória, as informações nos são oferecidas com excessiva frieza, os diálogos são expositivos e cansativos, o desenvolvimento da trama é, muitas vezes, inverossímil – as pistas que conduzem às conclusões surgem ao sabor do vento, de acordo com a conveniência da história, por vezes sem qualquer relação com o que aconteceu até ali. É verdade que o acréscimo de desenhos e outras imagens expandem a nossa experiência e ajudam a encorpar o universo ficcional proposto por Uketsu; mas a base literária é frágil, até mesmo frouxa.


Ao final, parece que os desenhos e os esquemas estão ali para nos distrair, para desviar nossa atenção da ausência de habilidade, ou mesmo de familiaridade, com a literatura. Não me refiro a sofisticados procedimentos de escrita, nada disso: apenas sinto falta do mínimo. De personagens que não se comportem como autômatos, de informações cruciais que não apareçam do absoluto nada, de diálogos que não funcionem como orientações de um manual de jogo de tabuleiro, de cenas que não sejam artificiais… enfim, de alguma vida que nos atraia e conduza às mortes propostas pelo livro.


Uma pena, pois é conhecido e celebrado o horror de autoria japonesa, nas mais diversas linguagens. Junji Ito e Suehiro Maruo nos mangás, Takashi Miike, Kiyoshi Kurosawa e Takashi Shimizu no cinema, Koji Suzuki, Otsuishi e Sayaka Murata, na literatura, são alguns dos muitos nomes de artistas que dominam os mecanismos do arrepio em seus respectivos formatos. Para este colunista, Uketsu — seja quem for — ainda não estaria neste grupo.

 
 
 

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