Um homem pálido dança atrás de uma grade, ante um fundo esfumaçado e ao som de uma percussão em contratempo. Sua expressão é ameaçadora. Quando soa uma nota grave, há um corte para um rosto em primeiro plano, de óculos escuros, cigarro na boca sensual.
Outras imagens de pessoas se divertindo em uma pista de dança acompanham uma frase de baixo simples e potente, com três notas descendentes, emprestadas de Rock 'n' Roll (Part 2), do músico britânico Gary Glitter. A cena marca o início de dois clássicos. O primeiro é o clipe de Bela Lugosi’s Dead, música de maior sucesso da banda britânica Bauhaus, uma das precursoras do rock gótico. O segundo é Fome de viver, filme de 1983 dirigido pelo britânico Tony Scott, escrito por Ivan Davis e Michael Thomas, e protagonizado por David Bowie, Catherine Deneuve e Susan Sarandon. A abertura do filme foi transformada no vídeo oficial da música do Bauhaus.
Considerado um dos principais títulos vampíricos dos anos 1980, Fome de viver completa 40 anos em abril de 2023. E, parafraseando o clichê, “quem ganha presente é você”, fã da obra: a editora Sebo Clepsidra vai publicar uma nova edição do romance de 1981 que deu origem ao filme. Ele está em campanha de financiamento coletivo e pode ser adquirido neste link. Aqui no Brasil, o romance de autoria do norte-americano Whitley Strieber está fora de catálogo desde 1987. A tradução e o prefácio da nova edição foram assinados por este colunista. E tal foi o prazer que senti ao conhecer a fonte literária e rever o filme, que gostaria de compartilhar algumas palavras a respeito deles por aqui. . Vampiros científicos Começo ressaltando a mistura de ficção científica e horror em ambas as obras. Fome de viver, o filme, usa a ciência para explicar algumas das características principais dos vampiros: a vida eterna estaria associada a uma espécie de sono abissal, e a transformação de um mortal em criatura da noite se dá pela transfusão de um tipo de sangue anômalo, de composição extraordinária.
Na obra de Tony Scott, contudo, essas relações entre ficção científica e vampirismo são atenuadas quando comparadas ao romance de Whitley Strieber, no qual encontramos uma mistura muito mais densa entre ciência de ponta e horror sobrenatural. Esse entrecruzamento é representado pelas duas personagens principais: Miriam Blaylock, a vampira sedutora (personagem de Catherine Deneuve no filme), e Sarah Roberts, a médica brilhante (Susan Sarandon).
Ambas personificam visões de mundo opostas. Com mais de 2 mil anos de idade, Miriam é filha do mistério, herdeira de uma espécie cuja origem remonta ao Egito Antigo e à comunhão entre entidades monstruosas e seres humanos.
Sarah, por sua vez, é quase toda ciência – uma jovem gerontologista pragmática, de carreira meteórica, reconhecida pela pesquisa das relações entre sono e envelhecimento. O encontro entre as duas, e suas consequências, está no núcleo da trama tanto do filme quanto do livro.
Sono profundo, vida longa
No romance de Whitley Strieber, é maior o espaço dedicado à fundamentação científica dos fenômenos vampíricos. Boa parte da trama se desenvolve no Centro de Pesquisa Médica Riverside, onde Sarah trabalha investigando as relações entre sono e envelhecimento. Ela está sempre acompanhada de Tom Haver, seu colega e namorado, com quem tem uma relação instável, alternando momentos tórridos e brigas violentas.
Por meio dos diálogos de Sarah com Tom, Strieber introduz conceitos complexos de fisiologia e hematologia, de modo a justificar a tese de sua personagem: o prolongamento da vida por meio do adormecimento profundo. É justamente essa pesquisa que leva Miriam até Sarah, graças a um famoso livro publicado pela médica.
No início, o intuito da vampira é descobrir uma solução para o perecimento de seus “transformados” – pois, diferentemente dela, todos acabam definhando após alguns séculos de existência, o que fatalmente a condena à solidão. Mas Miriam acaba por se encantar com Sarah, e as circunstâncias da trama fazem com que mude de planos. Nem mortos, nem vivos A propósito, a solidão da protagonista é uma das forças do romance. Miriam caminha na tênue linha que separa a monstruosidade da humanidade, ora pendendo para um lado, ora para outro. Por meio de flashbacks e saltos temporais, descobrimos que ela precisou se brutalizar para suportar o terrível destino que lhe foi reservado.
Não nos referimos ao fato de que viva à base do sangue e da carne de humanos, mas sim de que precise “auxiliar” seus transformados a morrerem quando eles começam a apresentar sintomas de enfraquecimento. E, na verdade, não se trata de morte o que os acomete, mas de algo muito pior, uma espécie de coma desperto. O símbolo mais marcante dessa ambivalência de Miriam é a relação dela com John Blaylock, seu companheiro desde o século 18 (personagem de David Bowie no filme). Logo no início do romance, John dá indícios de que começa a perder vigor. Tem dificuldades para dormir e a fome o acomete com mais frequência.
Miriam e John percebem o que está acontecendo; ela enfrenta uma espécie de luto silencioso, ele renega o fato de que esteja morrendo e passa a odiá-la, furioso com as promessas falsas que ouvira.
Nossa conexão com as motivações de ambos os personagens é inevitável. Compreendemos tanto a solidão atroz de Miriam, sentimento que a leva a se dedicar à preparação de potenciais companheiros ou companheiras no futuro, quanto a transformação de John em um monstro, convertendo-se em um possível vilão da trama. Homens são empecilhos Chama a atenção também a tonalidade dos personagens masculinos da história. John Blaylock e Tom Haver são pálidos em relação à exuberância de Miriam e Sarah. E não só: à medida que o enredo se desenvolve, ambos ainda se revelam empecilhos para que as duas se encontrem.
O amor de Tom por Sarah é profundo e verdadeiro, mas ambições profissionais se interpõem. Ele enxerga, na pesquisa revolucionária da companheira, uma oportunidade de afastar inimigos políticos dentro de Riverside e assumir a direção do Centro. Assim, Tom figura como o elemento ordinário que impede a transcendência de Sarah rumo ao extraordinário, representado pela aproximação de Miriam. Teríamos, aqui, o confronto entre o secular e o mistério – ou o sagrado feminino, isto é, o vínculo espiritual e religioso com entidades femininas. Cabe lembrar que a protagonista é filha de Lâmia, uma rainha da Líbia que, de acordo com a mitologia grega, tornou-se um demônio devorador de crianças. Desses choques entre o antigo e o novo, entre a ciência e o sobrenatural, resulta um romance que ainda tem muito a dizer.
Esse mérito também deve ser atribuído à escrita do autor. No geral condensado e incisivo, Strieber com frequência nos provoca a reler, a olhar melhor as cenas em busca de algo que possa nos ter escapado.
E algo invariavelmente escapa. Porque estamos diante não só de criaturas esquivas, enigmáticas, que há séculos nos fascinam; também nos vemos frente ao mistério da própria literatura, que é o encontro com o outro. Nesse caso, o assustador (porque condenado à solidão) outro.
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