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  • Foto do escritorOscar Nestarez

Conto: Far niente (?)


O breve texto abaixo foi publicado no fanzine que acompanhou o lançamento de Breu, oitavo disco da banda paulistana Lestics. O zine foi criado com obras (textos, quadrinhos, ilustrações, fotos etc) que dialogam com as incríveis letras de Olavo Rocha, o vocalista da banda. No meu caso, escolhi a faixa Far niente e elaborei uma breve narrativa a partir dos versos, que estão em itálico.




Esta manhã foi particularmente difícil. A muralha entre nós despertou mais alta, mais espessa. Não havia outro motivo que não o desgaste. Nem eu, nem você aguentamos mais, ainda que você tenha me parecido mais perturbada, desta vez. Nossos olhares se provocaram sem cessar, mas eu estava exausto demais para discutir. Sempre que pressenti que você abriria a boca, saí da sala ou de qualquer outro cômodo pelo qual você me seguiu como um espectro infeliz.


Agora, depois do almoço, sinto a paralisia de costume. Mas também sinto algo novo, uma espécie de dor entalada aqui, bem no meio da tarde. É arrastada e triste, não tem o ímpeto da manhã. Talvez seja a pior parte do dia, esta, em que os segundos vão roendo as duras bordas das horas. Roem também, e já sem apetite, a vontade de confrontar, pelo menos a minha.


Depois de comermos num silêncio eloquente, você e eu nos separamos mais uma vez. Enquanto, em algum canto da casa, você se entrega ao mais amargo far niente, estou no outro extremo, em meio a devaneios também impotentes.


A muralha continua alta, espessa. Talvez ainda mais. E mesmo aqui, a muitas palavras de distância, sei que te ocorre um pensamento semelhante: que a preguiça promete, à nossa vergonha daquilo que nos separa, que o dia seguinte vai ser diferente.


Talvez seja a alta temperatura que nos amoleça, e a todo o resto. A tarde é quente e pegajosa, de mosquitos e leseira, com o sol cozinhando em fogo brando a semana inteira. Tem uma janela aqui, pela qual vejo os contornos sinuosos da cidadezinha.


Antes toda nossa, agora desconhecida. Cidade apenas, sem o cafuné do diminutivo. Na viela de paralelepípedos, assisto à vontade que evapora. Minha respiração entrega rendição, meu hálito embaça esta vidraça de onde você me namorava. Lembra? Na época em que bastávamos um ao outro, e a vida lá fora era somente a vida lá fora.


Enquanto isso, sei que você está do outro lado da casa. E sei que você se entrega ao mais amargo far niente. Assim como acontece comigo, a sua preguiça promete à vergonha que o dia seguinte vai ser diferente.


Mas, nessa mesma tarde, decido que não.Na verdade, meu corpo se resolve antes do meu intelecto, porque a respiração se acelera e a cidadezinha some. A moleza dá lugar à urgência, o ímpeto retorna muito mais intenso, o sangue ferve. É preciso agir.


Procuro algo apropriado; acredito que este martelo sirva.


Breu está disponível no Deezer e no Google Play Música

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