Foi essa a mensagem que li na tela do celular, ao tirá-lo do bolso enquanto caminhava apressadamente pela estação de metrô. No mesmo instante, tudo pareceu se calar. “Só” muita tristeza. Era “só” muita tristeza o que ela sentia, e o que a fazia chorar sem parar já por dois dias. Uma tristeza para a qual antes, em tempos passados, havia explicações – ou, ainda, nós as arranjávamos. Mas agora, não.
Tudo estava aparentemente nos conformes. A vida se encaminhava de acordo com os sacramentos da contemporaneidade. Havia trabalho, e bem remunerado, que levara à independência, e que levara a um amadurecimento e a uma sólida composição da auto-estima. Havia paqueras, flertes, promessas de relacionamentos verdadeiros e duradouros, havia inspirados planos profissionais para o futuro, havia contentamento... Mas, como uma sombra imensa, a tristeza engole tudo, sem se justificar. Apenas aparece e devora o que há pelo caminho, lançando-a numa agonia que dá a impressão de reunir, em si toda, o “mal do mundo”.
Pensei nisso conforme subia as escadas e saía da estação para o dia ensolarado de dezembro. Eu estava no centro da cidade, e, ao olhar em volta, para a humanidade derrotada ao redor, pensei no “mal do mundo”. Pensei que, por força de algum mecanismo oculto operando através dos tempos, alguns de nós eram involuntariamente submetidos ao horror absurdo de nossas existências, a toda a carga somada de nossos pesares e tragédias, à nossa ruína pura e simples. E pensei que ela, ao me enviar aquela contida súplica por socorro, deveria, por força dessas tremendas oscilações psíquicas, estar entre aqueles alguns.
Não me lembro de quando tais distúrbios haviam começado, mas são muito nítidas as recordações das primeiras crises. No começo, eu procurava evitar a consciência de que havia realmente algo de errado, de que aquelas terríveis e inexplicáveis cenas de desespero, que eclodiam tão repentinas quanto sumiam, eram causadas por algum transtorno mais sério. Com o tempo e os tratamentos – às vezes mais intensivos –, chegou-se aos diagnósticos atuais, que não vêm ao caso nessa reflexão, já que aqui apenas tento compreender a natureza dos motivos que levaram uma pessoa pouco mais nova do que eu, com o mesmo sangue a correr pelas veias, a ser acuada por uma mente nada menos do que sádica, noturna, indomável.
Mas, conforme fomos envelhecendo, percebi que não haveria escapatória. Eu deveria encarar o fato de que ela, de tempos em tempos, sucumbiria aos ferozes ataques do “cão negro” da depressão. Aos poucos, não apenas aquela consciência foi se misturando aos meus pensamentos cotidianos, como também à impressão de que, em algum momento futuro, provavelmente restaria somente a mim para ajudá-la a enfrentar a quimera do mal do mundo, nas noites escuras em que o mais luminoso dos dias se transformava.
Um dia exatamente como aquele, em que eu caminhava pelo centro, onde a luz de um sol soberano escancarava todas as entranhas dessa dor sem fim, desse projeto sem salvação que somos nós. Todos os esboços, os rascunhos, os descartes estávamos lá, no fundo infelizes com a nossa própria existência e indignados com a do próximo, olhando e desafiando uns aos outros, à espreita e à espera do menor deslize para devorarmos uns aos outros.
Bem, tudo isso é devaneio, fruto de uma impressão particular daquilo que me rodeia, num dia que se prometia suave e que, com aquelas poucas palavras que li, tornou-se ameaçador como uma profecia de Cassandra. Mas, afinal, é este o propósito dessas linhas – tentar explicar a mim mesmo, com meus próprios recursos e a partir da minha visão de mundo, as agonias a que ela vinha sendo submetida.
E era isso que tentava fazer caminhando pelo centro, após resolver minhas pendências por lá. Naquele momento, mais do que em qualquer outro, procurei me colocar no lugar dela, tentando sentir e percorrer aquela dor por todas as suas dimensões possíveis. Olhei fixamente para a ruína humana à minha volta e para mim mesmo, buscando apreender as mágoas escondidas, os anseios solapados, os desejos frustrados, as fúrias, os medos... enfim, tentei me evadir do dia e entrar na tristeza, caminhar por sua extensão e espalhar-me por seus meandros vermelho-escuros sob um céu feroz, familiarizar-me com aquelas paisagens esculpidas pelo sofrimento, sentir o peso das manifestações desprendidas do solo pulsante, carnoso e moribundo, ouvir os uivos carregados pelo vento, que, embora constante, não atenuava a ardência que me devorava pelo simples fato de tentar estar ali, o vento varado por gigantescas sombras voadoras que eu não chegava a distinguir...
Mas foi em vão. Percebi que isso não se faz. Não se entra por vontade própria nessas paragens; por amor, solidariedade ou qualquer motivo que seja. Devido a algum mecanismo oculto e impiedoso, eu estava proibido de acessar aquilo tudo na qualidade de acompanhante; a não ser que pagasse um altíssimo tributo de saúde mental. O máximo que consegui foram os vislumbres acima, e experimentar a ventania. Foi o que me deu calafrios naquela canícula de concreto do centro.
Então percebi o quão inalcançável e solitária ela estava, distante naquelas regiões. Era de lá que ela enviava, agora percebo, não uma súplica – pois, após tanto tempo, já entendera que suplicar não adiantava –, mas antes uma constatação fria. Era de lá que chegavam, trazidas pelo vento, aquelas poucas mas devastadoras palavras: ”é só que sinto muita tristeza”. Não, não era muita; era toda a tristeza. Era toda a tristeza do mundo, acessível apenas àqueles dotados de uma específica compleição mental, iluminados ao contrário. E interditada a quem os ama.
Porém, em algum lugar, o vento fará a curva. E quando a fizer vai carregar de volta, para o seio da desolação, a minha resposta e milhões de outras, repletas de cura e carinho, como promessas de resgate, como provisões para saciar a agonia, como tochas para interromper a escuridão.
Foi o que procurei expressar na resposta que, revirando o celular para escapar do reflexo de um sol apesar de tudo promissor, enviei para ela.
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