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Foto do escritorOscar Nestarez

Entrevista: Mariana Enriquez e a intuição na escrita de horror

Atualizado: 6 de jan. de 2020


A escritora argentina Mariana Enríquez (Foto: Leonardo García / Divulgação)

É conhecida a tradição argentina de autores de literatura fantástica. Nomes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares, entre outros, figuram entre as principais referências sul-americanas dessa vertente, na qual prevalece o embate entre o real e o sobrenatural, entre o possível e o inexplicável, entre a racionalidade e a fantasia — ou a imaginação.


Novas vozes têm surgido na esteira de tal tradição. Sim, são figuras herdeiras desses territórios ficcionais do puro estranhamento, nos quais se apagam as fronteiras entre o mundo conhecido e o desconhecido. Mas também são vozes em que se nota a influência de escritores declaradamente de horror, como Stephen King, Peter Straub, Ramsey Campbell ou Shirley Jackson.


Horror mais próximo da realidade

É o caso de Mariana Enriquez, autora da coletânea As Coisas que Perdemos no Fogo (2016) e do romance Este é o Mar (2019, ambos pela editora Intrínseca). Em conversa com a coluna, ela falou sobre suas narrativas breves, que vêm assombrando e fascinando leitores por onde passam. De acordo com Enríquez, isso ocorre porque os relatos de horror têm a possibilidade de chegar aonde os textos realistas jamais alcançam.


“Estranhamente, o horror é o que mais se aproxima da nossa realidade”,  afirma a escritora nascida em 1973, no subúrbio de Buenos Aires. “A sensação de que a realidade se dissolve, se torna estranha e sinistra, tão característica dos relatos de horror, pode ser facilmente reconhecida na nossa vida cotidiana”.


Enriquez revela ter experimentado essa sensação por meio de escritores da geração anterior à sua. Segundo ela, os já mencionados King, Straub, Campbell e Jackson, entre outros, promoveram uma revolução do horror nos anos 60 e 70. “Diferentemente de H.P. Lovecraft, Arthur Machen ou Algernon Blackwood, que eram mais distantes, por assim dizer, os autores das gerações seguintes realizaram um horror totalmente cotidiano, situado nas cidades, nos ambientes domésticos do nosso tempo. Eles incorporaram estereótipos do gênero, mas dentro dessas realidades”, conta.


Ela cita, como exemplo, o romance Salem’s Lot (1975), de King: “uma história de vampiros, mas também uma narrativa de cidades pequenas, das figuras excêntricas que geralmente vivem nesses locais, entre outras coisas”. A autora argentina afirma ter chegado ao horror após ter lido todos esses autores, “que conseguem colocar, na ficção, uma experiência, uma sensação muito cotidiana”.

Ela aceita a categorização, mas destaca que não é o engajamento que a leva a escrever: “Nos meus contos, há questões políticas de hoje e do passado — por exemplo, o desaparecimento de corpos, algo recorrente durante a ditadura argentina. Mas não penso tanto nisso quando escrevo", explica a escritora. "Sim, são temas que me interessam pessoalmente — o racismo, o desamparo das pessoas que estão à margem do sistema etc —, mas não me interessa nada o tratamento desses temas a partir do realismo. Principalmente em literatura. Porque me parece que há profundidades — inclusive para mim mesma, como autora — às quais a ficção de cunho realista me impede de chegar”.


Em defesa da imaginação

À moda de Borges, para quem os livros são uma extensão da memória e da imaginação, Enriquez defende com vigor o território da invenção — ainda que sua poética seja comumente visceral e macabra. “Ao pensar a realidade por meio da imaginação, vejo surgirem coisas que até me surpreendem como autora — e nem sempre de forma positiva. As mulheres dos meus contos, por exemplo, não creio que sejam especialmente agradáveis”.


Ela lamenta o fato de narrativas fantásticas, ou imaginativas, serem consideradas por muitos como “coisa de crianças ou adolescentes”. “Tenho a impressão de que, como adultos, somos incitados a não pensar também com a imaginação; parece que estamos condenados ao realismo. É uma limitação que nos impede refletir sobre a vida a partir de outros ângulos. Para mim, a literatura imaginativa ajuda a pensar a realidade”.


Os efeitos como causa

Seja como for, nos contos de Mariana Enriquez predominam as marcas do horror. Repulsa, desamparo, inquietação, estranhamento ou assombro são algumas das sensações provocadas pela leitura dos doze contos do livro.


Como produzir esses efeitos? “Há coisas que são bem planejadas, mas outras nem tanto”, afirma ela. “Lembro-me de quando compus o conto O Quintal do Vizinho. Eu já tinha em mente o desfecho. No entanto, ao escrever o trecho em que a protagonista vai até a casa ao lado, eu não tinha plano algum. Somente pensava nas coisas que me pareceriam absolutamente sinistras se eu entrasse clandestinamente na casa de alguém. Quais imagens seriam as piores possíveis?”


Para Enriquez, a escrita do horror envolve uma mistura entre elementos planejados, que ela “sabe que vão funcionar”, e outros que vão surgindo pelo caminho, que ela chama de componente intuitivo. “Gosto muito de usar a intuição ao escrever. Ou seja, de ir trabalhando e quase que não pensar tão claramente, e nesse processo perceber o que realmente me dá medo. Em A Casa de Adela, por exemplo, quando as crianças entram no local e encontram as estantes cheias de dentes espalhados; eu não sabia o que elas veriam. Também não sabia que as luzes da casa estariam acesas. Nada foi planejado, isso apareceu enquanto eu estava criando a história”.


Já em relação ao que “sabe que vai funcionar”, Enriquez dá um exemplo: “algo absolutamente inesperado inserido estrategicamente numa história. Em O Quintal do Vizinho, quando a protagonista encontra, na cozinha da casa que invade, aqueles pedaços de carne apodrecida, isso provoca dúvidas: Servem para alimentar algum animal? O dono da casa come carne podre? Com uma breve informação, dispara-se a imaginação do leitor, a realidade se torna ainda mais distorcida”.


Mulheres tomam a dianteira

Durante a conversa, Mariana Enriquez contou também sobre suas influências, destacando as autoras: “Shirley Jackson me marcou demais. Sobretudo em relação à voz das mulheres — essas mulheres loucas que são suas personagens. Penso especificamente na protagonista de Sempre Vivemos no Castelo (1962), que não sabemos se é bruxa ou não, há todo um tom alucinado na construção dela, algo sempre muito ameaçador. Outra autora fundamental para mim é (a argentina) Silvina Ocampo, sobre quem escrevi uma biografia (La Hermana Menor: un Retrato de Silvina Ocampo, de 2014, ainda inédito no Brasil)”.


Chama a atenção, também, o fato de as narradoras e protagonistas da autora serem predominantemente mulheres. Mas nem sempre era assim. “Eu achava muito difícil (d)escrever mulheres quando era mais jovem. Creio que isso se relacionava ao fato de que sempre lemos mais narradores masculinos. Mesmo escritoras como Patricia Highsmith usavam homens para narrar suas histórias. Então, as vozes das mulheres estão menos registradas na literatura, são como um sub-registro. Para mim, isso era uma limitação técnica, o fato de só conseguir escrever com narradores homens — os textos saíam mais facilmente”.


Na época, a jornalista de formação escrevia textos mais realistas, em tom de crônica. Foi para enfrentar essas limitações que ela realizou um experimento: escrever horror com narradoras femininas. “E aí surgiram essas vozes fortes, verossímeis, que me pareceram muito potentes. E que dão medo. Aconteceu quase que naturalmente, esse registro da mulher, e os personagens masculinos começaram a perder força”, conclui ela.

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