“Quão longe é longe demais?” Esta é a pergunta que parece ocupar o núcleo de boa parte das narrativas de ficção científica. De maneira geral, a indagação representa a vontade da humanidade de transpor os limites impostos pela natureza, de conquistar a soberania sobre aspectos da vida que desde sempre foram ingovernáveis — a morte sendo o principal deles, evidentemente. Esta é, acima de tudo, a pergunta que está no cerne de Frankenstein, Ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, que, no prefácio à segunda edição do romance, definiu-o como “Uma história que pudesse falar aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse o arrepiante terror”. Eis outra formulação essencial para as obras em que componentes científicos são fundamentais para o andamento das tramas, ou seja, de ficção científica. E é natural que a exploração dos “misteriosos medos” por parte da ciência implique em “arrepiantes terrores”. É natural, assim, que a ficção científica se avizinhe do horror, e que os limites de ambas se confundam.
Frankenstein é a mais conhecida representação dessas relações. Hoje, o romance é considerado o fundador das narrativas de ficção científica, ao mesmo tempo em que é celebrado como um clássico da literatura de horror. Pois trata da história de um homem de ciência que, afinal, torna-se assombrado pelas próprias falhas. Movido e cego pela ambição, Victor acaba por trazer somente ruína — para si, para as pessoas que ama e, principalmente, para o ser que criou.
Assim como Prometeu (o titã que roubou o fogo de Héstia para dar aos mortais e foi punido), Victor Frankenstein padece por sua afronta — não a Zeus, mas à natureza. E padece sem demora: imediatamente após dar vida ao ser, ele foge de sua própria casa, devorado pelo arrependimento e pelo temor. Não tarda, também, para que a infeliz criatura sucumba. Ela logo ganha consciência de si e do horror que sua própria figura causa nas pessoas das quais tenta aproximar-se. O relato que faz ao seu criador é comovente, e não seria exagero colocá-lo entre as mais belas passagens da literatura ocidental. Logo ficam claros os motivos que transformaram uma figura tão humana no “monstro”, no “demônio” temido e odiado por Victor.
O monstro mostra
A figura monstruosa, a propósito, fornece uma ótima pista sobre a natureza das relações entre ficção científica e de horror. O pesquisador norte-americano Jeffrey Jerome Cohen propõe, em seu livro Seven Theses - Monster Culture (Sete Teses - A Cultura do Monstro), “um método de ler culturas a partir dos monstros que estas engendram”. Essa aspiração se torna clara na primeira proposição de Cohen: o corpo do monstro é um “corpo cultural”. Ao agregar certas tendências do momento histórico, a figura do monstro, em especial seu corpo, é forjada pelas ansiedades e preocupações de uma era.
Considerando-se esse entendimento, a criatura de Mary Shelley dá materialidade a apreensões e anseios latentes da época. Naquele fatídico verão de 1816, na Vila Diodati, longos foram os debates entre Percy Shelley e Lord Byron sobre o princípio e o fim da vida, bem como os experimentos científicos do Dr. Darwin (Erasmus, avô de Charles, importante naturalista do século XVIII). A jovem autora acompanhava os colóquios como “muda ouvinte” (conforme ela explica no prefácio), certamente tocada pelo fascínio do horror. E foi sob esse feitiço que, na noite seguinte, ela sonhou com a criatura que viria a mudar os rumos da literatura a partir dali.
Goya e as barbáries do intelecto
Outra obra pode fornecer uma base metafórica para que se compreenda o funcionamento do horror por meio da ficção científica. Trata-se da pintura “O sono da razão produz monstros”, que compõe a série “Caprichos” do espanhol Francisco de Goya. Na imagem, vê-se um homem adormecido cercado por corujas e morcegos. No contexto histórico em que a obra se situa, pode-se ler uma crítica ao país de origem do artista — uma crítica tão veemente que, mais tarde, atrairia os olhares acusatórios da própria Inquisição Espanhola.
O aviso de Goya parece antecipar o enlace entre o horror e a ficção científica em um campo onde ambos se correlacionam intensamente: a distopia. Ou seja, a vertente da ficção científica que se ocupa do sono da razão de toda uma sociedade, resultando em obras como 1984, de George Orwell, ou Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. São narrativas que despertam o olhar para um outro tipo de monstro, que não se esconde pelas barbáries do instinto e da carne, mas se reveste de uma selvageria mais calculada — e, talvez por isso mesmo, ainda mais terrível: aquela do intelecto.
Quando os impulsos dos personagens de 1984 são estimulados e nutridos pelo Grande Irmão na costumeira prática dos “Dois Minutos de Ódio”, é difícil concluir o que provoca mais desconforto: a carranca que aquela gente civilizada parece esconder, ou o modo como o ódio é ali despertado e alimentado para sustentar uma dinâmica política totalmente contaminada.
Tempo de distopias
Já em obras contemporâneas, a barbárie do instinto e a barbárie do intelecto estão mais próximas do que se imagina. É o caso da ficção científica O Poder (2016), da autora inglesa Naomi Alderman. Na obra, a troca de um sistema patriarcal violento por um matriarcado bélico resulta em uma interessante imagem de monstro: o próprio poder, como o nome já sugere, e a mudança provocada por ele nas pessoas que o detém.
Um misterioso evento marca o início do livro de Alderman: o “dia das meninas”. A data será um marco na história, pois é quando certas jovens em todo o planeta adquirem a “trama”, a habilidade de provocar choques nas pessoas. Esse poder começa a ser usado como defesa contra abusos praticados por padrastos pedófilos, assassinos contratados e outros tipos de violência corriqueira; no entanto, a “trama” ganhará projeção e modificará a política daquele mundo.
Ao concluir que toda distopia é, na realidade, uma história do futuro, Jill Lepore, professora de História de Harvard, reflete [https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-dystopian-fiction] sobre as consequências de uma literatura forjada em um clima de desesperança política. E revisita as palavras de Margaret Atwood: "Utopias, só podemos imaginar. Distopias, nós já possuímos". Quando hoje percorremos os olhos pelas prateleiras de obras distópicas, podemos aferir que essas narrativas incorporam e comunicam enormes cargas do pessimismo em relação aos tempos atuais. Um exemplo é a saga Jogos Vorazes, considerada a pioneira da leva. Os romances da autora inglesa Suzanne Collins trazem a face monstruosa da Capital, que se torna o espelhamento de nossos próprios vícios por entretenimento e celebridades, aliados à severa alienação diante da desigualdade social.
Feições derretidas
Nessa esteira, Divergente e Maze Runner exploram temáticas semelhantes. No entanto, enquanto a dissolução de identidade pessoal frente à escolha de um grupo rouba a cena na trilogia da norte-americana Veronica Roth, nos romances de seu conterrâneo James Dashner, o custo da ciência parece se sobrepor à dignidade humana. Em Divergente, certamente causaria pavor a um jovem a saída do conforto do lar para integrar uma facção com costumes e regras completamente diferentes. Como é habitual em distopias, no enredo de Roth, o comportamento que a facção nova espera do recruta nem sempre acompanha os valores pregressos aprendidos em sua família de origem, ou dispostos em seu próprio repertório individual.
Mas se é uma monstruosidade subjetiva a que contamina as páginas de Divergente, a saga de Dashner vai por outro caminho. Encabeçadas pelo explosivo Correr ou Morrer, as narrativas contam com cenas de personagens lutando pela sobrevivência em um labirinto repleto de “Verdugos”, criaturas horripilantes, que parecem ter saído direto do universo de Lovecraft.
Seja como for, somos levados a perguntar quais são os monstros que tanto nos fascinam e nos assustam nas distopias atuais. A resposta não é simples, mas algo podemos afirmar: hoje, a face monstruosa produzida pela ficção científica já não é mais tão visível. Com a dissolução da identidade nos papéis sociais da vida contemporânea e o conceito de modernidade líquida apontado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, as feições humanas se derretem, dando forma a uma outra faceta monstruosa, talvez ainda mais perigosa.
Por trás dos clones de Dezesseis, dos corpos descartáveis de Carbono Alterado, ou dos rostos belamente esculpidos de Feios, a verdadeira monstruosidade se esconde nos bastidores. É a inteligência que encena um cortejo de horrores com uma barbárie mais ardilosa, mais assustadora — e certamente menos justificável — do que a transgressão dos instintos.
*Artigo coescrito com Carol Façanha, escritora e doutoranda de Literatura de Língua Inglesa na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
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