Dois lançamentos de horror brasileiro perfeitos para esta sexta-feira, 13
- Oscar Nestarez
- 30 de jun.
- 5 min de leitura

Junho trouxe novidades animadoras para fãs de horror, em especial de horror nacional. O mês marca o lançamento do longa-metragem Prédio vazio, de Rodrigo Aragão, e do romance Como nascem os fantasmas, de Verena Cavalcante. As obras são bem-vindas porque ambos, cada um à sua maneira, se dedicam por inteiro ao gênero, reivindicando o título "obra de horror" nesses e em trabalhos anteriores. Enquanto o capixaba Aragão, de 48 anos, apresenta uma sólida carreira no cinema, Cavalcante surgiu com brilho alguns anos atrás, quando publicou a coletânea de contos Inventário de predadores domésticos pela DarkSide. Antes, havia lançado outras coleções de narrativas curtas, Larva e O berro do bode. Em certa medida, os dois lançamentos dialogam: são histórias de fantasmas que apostam no grotesco e exploram espaços bem brasileiros.
Como nascem os fantasmas, primeiro romance de Verena Cavalcante, foi publicado pela Suma, selo da editora Companhia das Letras. É narrado por Beatriz, uma menina de dez ou onze anos de uma cidade do interior que intuímos ser do estado de São Paulo. Ela vive com a avó e o avô, ex-policial entrevado numa cama. À primeira vista, a história é prosaica: Divina, a avó, é médium; como também é um tipo de heroína da neta, Beatriz fica obcecada por conhecer mais deste trabalho com o além. Quer descobrir como nascem os fantasmas, por assim dizer, em uma história que se revela de formação, de transição à vida adulta. A mãe de Beatriz e filha de Divina, Ângela, já não existe quando a história começa, tendo morrido de causas que conheceremos depois.
Digo prosaica pois este resumo remete, em certa medida, a Cupim, romance da espanhola Layla Martínez lançado por aqui em 2024. Nele, uma avó médium e sua neta também convivem com a ausência da filha/mãe, e os espíritos com que se comunica a idosa serão decisivos para a trama, assim como em Como nascem os fantasmas. Há também algo de Come terra, da argentina Dolores Reyes, romance em que uma jovem, ao ingerir a terra da casa de pessoas desaparecidas, descobre seus paradeiros — Divina tem um dom parecido, mas sem que precise comer barro.
A propósito, Cavalcante conhece bem este movimento recente a que se filia, de autoras latinoamericanas de horror e insólito. Chegou a participar de Dantescas - Cuentos de mujeres que descendieran a los infiernos, antologia organizada pela equatoriana María Fernanda Ampuero, e também de Cabezas en la ventana, conjunto de contos de autores latinoamericanos publicado no México.
Porém, se o enredo de seu romance soa simples ou remete a outras histórias recentes, sua execução o torna singular. Além de se mostrar uma grande criadora de imagens horroríficas, Cavalcante revela uma afeição que beira o fetiche por detalhes sórdidos. Nas cenas culminantes de diferentes seções do livro — aquelas passagens que situam uma obra bem no âmago do gênero de horror —, nada escapa aos olhos da autora, que nos oferece um banquete de vermes, putrefação, chagas purulentas, olhos vazados, vísceras e muito mais.
Não se trata só de imaginar o horror objetivo, que acomete o corpo e a matéria: Cavalcante também é hábil ao explorar a perspectiva subjetiva, psicológica, que a tudo deforma e em certo ponto da história nos lança no bosque das dúvidas. É quando Beatriz realiza um ritual para “abrir as portas” para os fantasmas; está ao lado de Lipe, amigo e eventual par amoroso. Guiados pelas anotações feitas pelo avô, que era uma espécie de auxiliar da avó nas cerimônias mediúnicas, Beatriz e Lipe ingerem chá de trombeta-de-anjo, entre outras coisas. Atravessam o véu e veem as coisas como realmente são — neste caso, macabras.
Este é o ponto alto do romance, um longo clímax bem manuseado, conduzindo a um desfecho arrojado e, para encanto deste colunista, nada feliz. Aqui o enredo volta a perder importância diante da expressividade do texto: segredos até são revelados, há os inescapáveis plot twists, mas eles empalidecem frente à exuberância narrativa da autora, que não teria perdido nada caso tivesse aberto mão de algumas convenções estruturais.
É verdade também que, às vezes, a voz narrativa se torna prolixa, maneirista demais. Em certos pontos, o fluxo de palavras poderia ter sido contido, para que seu jorro não corresse risco de cair na banalidade. É aquilo: um vulcão em erupção visto pela primeira vez é assombroso; mas, visto sempre, pode se tornar corriqueiro. Ainda assim, Como nascem os fantasmas configura um grande romance de estréia de uma autora que, a exemplo de tantas outras que são suas contemporâneas, sabe onde está e em que terríveis tempos vive. Isto basta para conhecer o horror verdadeiro, e para vir contá-lo a nós.
Rodrigo Aragão também sabe narrar o horror como poucos, e Prédio vazio, seu novo longa-metragem, confirma isso. Depois de vários filmes ambientados em espaços rurais — Mangue negro, A mata negra e Mar negro, por exemplo —, Aragão agora muda de ares em favor da sua cidade natal, Guarapari, no litoral do Espírito Santo. Nela está o prédio Magdalena, decaído e estranho, que destoa da animada vizinhança. Aliás, a opção por encenar o horror na orla capixaba já singulariza o filme; o diretor, também roteirista e efeitista do filme, está mais em casa do que nunca. E sabe encher de sombras a ensolarada cidade em que nasceu.
Depois de um prólogo encenando a rotina de um casal de idosos no prédio — com um desfecho trágico —, a história começa de fato quando termina o carnaval. Sem os turistas e os proprietários de apartamentos na orla, a maioria gente endinheirada que não mora na cidade, Guarapari fica fantasmagórica. E no Magdalena, o termo assume sentido literal. Com o carnaval, termina também o relacionamento tóxico de Marina (Rejane Arruda) com um morador do prédio, o que a aproxima de Dora (Gilda Nomace), a síndica, zeladora e um dos trunfos do filme. Em certo momento, Marina desaparece, o que leva sua filha, Luna (Lorena Corrêa), a correr para a cidade. Ao chegar, ela descobre as muitas tragédias ocorridas no Magdalena, e que Dora não cuida apenas dos moradores vivos de lá.
Na atmosfera e no enredo, o filme de Aragão dialoga com Dario Argento, mestre do cinema de horror italiano. O uso de cores fortes, os ângulos de câmera estranhos, os assassinatos misteriosos, a violência e o teor sobrenatural que permeia a história remetem a Suspiria e alguns gialli (gênero de suspense e romance policial) do italiano. Também pensamos em O iluminado, de Kubrick: o hotel vazio, fora de temporada, igualmente povoado por fantasmas; e sobretudo as várias cenas do elevador, eternizado pelo diretor britânico naquele banho de sangue quando se abrem as portas.
Deste saboroso caldo de referências emerge Prédio vazio. Da mesma forma que Como nascem os fantasmas, o filme reconhece suas referências ao passo que nos oferece o frescor de uma história cheia de cor local. Há, sim, pontos frágeis importantes, como algumas atuações limitadas e a artificialidade em excesso de certas cenas — muita luz, muita cenografia —, o que nos afasta do filme. Mas no geral, o novo longa de Aragão, assim como o livro de Verena Cavalcante, tem alma e personalidade. Ambos devem não só agradar a quem busca uma boa história de horror, mas também silenciar quem diz que o Brasil não tem grandes artistas do gênero.
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