Entre os cinco sentidos, provavelmente nenhum desperte tanto o medo quanto
a audição
Já dizia o autor estadunidense H.P. Lovecraft que “o mais antigo e mais forte sentimento humano é o medo; e o medo mais forte e mais antigo é aquele do desconhecido"*.
De fato: se hoje o ribombar de um trovão ainda nos assusta, que dirão os nossos parentes mais distantes, há dezenas de milhares de anos? Soltos em um mundo selvagem e desconhecido, os homens primitivos viviam constantemente apavorados — até porque o medo sempre foi um mecanismo de sobrevivência.
E, entre os cinco sentidos, provavelmente nenhum se mantinha tão alerta quanto a audição. O ouvido sempre enrijeceu os músculos, antecipou o perigo e disparou a adrenalina necessária para enfrentá-lo. Fosse o rumor crescente de uma tribo inimiga se aproximando, o farfalhar de um animal ameaçador pisando a relva, ou mesmo o espocar de um trovão, o homem antigo temia o que ouvia — e temia porque ouvia.
O homem de hoje, também. Prova disso é o papel fundamental da sonoplastia e da trilha sonora em qualquer filme de suspense ou horror. Sem um bom trabalho de compositores e sound designers, a maioria das obras-primas do cinema (e, cada vez mais, dos seriados e dos games) perderia muito de sua força. Imagem e som são cuidadosamente combinados para despertar o mais antigo e mais forte de nossos sentimentos.
Muito além das trilhas sonoras
Agora, o que acontece quando quando retiramos o “visual” dessa combinação? Quando apenas a sonoplastia e a composição são trabalhadas para inquietar e suscitar o medo?
Aí temos, literalmente, a "música de horror". Não estamos falando de trilhas sonoras, que são acessórias, instrumentos para que uma história seja contada na tela. Também não se trata daquelas vertentes extremas do heavy metal, com temáticas específicas, como o black metal (geralmente satanismo e paganismo), o death metal (autoexplicativo), o splatter metal (nojeiras e afins) e derivados.
Embora esses gêneros tenham contribuído demais para o universo do horror, aqui exploraremos territórios menos conhecidos. Avançaremos por paisagens menos familiares, menos óbvias e, exatamente por isso, mais ameaçadoras. Paisagens que nos convidam a retroceder séculos e séculos, colocando-nos na pele cascuda daquele homem primevo, desamparado e horrorizado. As paisagens que se reúnem sob a categoria de “dark ambient”.
Papai industrial, mamãe noise
O nome não favorece, é verdade. Vem de “ambient music”, que muitos podem associar a músicas de elevador. Mas não é o caso.
Até pela matriz musical: o dark ambient é uma dissidência de gêneros conhecidos como noise e industrial, cujas marcas são a experimentação e a combinação entre rock e música eletrônica. Dessas matrizes, os artistas de dark ambient herdaram as temáticas obscuras, a influência eletrônica e a liberdade experimental — sempre a serviço do “mal”, é claro.
As primeiras manifestações começaram a surgir no final dos anos 1970. O pioneirismo coube a nomes como Throbbing Gristle, Einstürzende Neubauten, Swans, Cabaret Voltaire, SPK e uma série de outros conjuntos. Todos tinham um ponto em comum: entrar em um estúdio com os mais variados objetos e instrumentos e só sair de lá com algo que causasse impacto. Impacto físico, no caso de bandas como o Swans: não era raro que pessoas vomitassem durante as apresentações ensurdecedoras de Michael Gira e seus asseclas.
De dia, Hollywood; de noite, pesadelos sonoros
Com o passar do tempo, o experimentalismo foi perdendo força. A explosão libertária dos anos 1970 ficou para trás; o mundo foi se tornando mais e mais sombrio, e a música desses artistas também. A partir dos anos 1980 e 1990, um número cada vez maior de músicos passou a dedicar esforços à criação de ambiências menos experimentais e mais consistentes, conceituais.
Essencialmente evocativos, esses compositores deixaram de lado as piruetas eletroacústicas para explorar texturas e timbres graves, lentos e macabros — para de fato criar panoramas com vida e personagens próprias, que iam além do caráter suplementar de trilhas sonoras. Nomes como Nocturnal Emissions, Zoviet France, Nurse with wound e Lustmord surgiam, naquele momento, como os primeiros paisagistas do desconhecido.
Daremos destaque a esse último. O projeto Lustmord nasceu realmente à noite, como atividade paralela do galês Brian Williams. Sem exagero: compositor de trilhas sonoras durante o dia, Williams passou a dedicar as noites à criação das peças mais tenebrosas de que se tem notícia. São… obras extensas, vagarosas e monumentais, que ora nos acomodam na carcaça de um titã voador, ora nos abandonam diante dos abismos de nós mesmos, ora nos aprisionam numa região que nem Lovecraft ousou conceber, assombrada por almas monstruosas.
Rumo ao coração das trevas
Subjetividades à parte, o fato é que o dark ambient, desde então, vem atraindo cada vez mais criadores — e aficionados. O movimento constituiu uma inegável novidade no universo do horror: a exploração de recursos musicais com o único intuito de causar desamparo, inquietação, desfamiliaridade e todos aqueles sentimentos que associamos ao medo. A música, neste caso, deixa de servir ao cinema para assumir, ela própria, a criação de mundos apavorantes.
Talvez não seja exagero comparar essa novidade à publicação de O Castelo de Otranto, em 1764. Hoje, é consenso que o livro do britânico Horace Walpole tenha inaugurado o gênero literário do horror — justamente por apresentar uma história cuja única finalidade era amedrontar os leitores, sem intenções morais ou religiosas.
Assumindo que tanto a literatura quanto a música tenham esse poder de esporear a imaginação, de convocá-la para preencher as lacunas do desconhecido, talvez não seja um delírio afirmar que estamos diante de um novo veículo para “o mais antigo e mais forte sentimento humano” que existe. Um veículo que atualiza a nossa “herança do medo”, unindo os sons que aterrorizavam nossos ancestrais às possibilidades oferecidas pelos recursos tecnológicos de hoje.
Afinal, como já também já dizia outro gigante — o compositor húngaro Franz Liszt —, “a música é o coração da vida”. E, neste caso, das trevas também.
Comments