A noite de Halloween de 1992 na Inglaterra entrou para a história, e por uma porta macabra. Na ocasião, a rede britânica BBC levou ao ar um programa chamado Ghostwatch, em formato de documentário, no qual um apresentador visitava uma casa assombrada. A transmissão teria acontecido ao vivo, e estarreceu a audiência com uma série de fenômenos sobrenaturais. O furor foi imediato: na mesma noite, a BBC recebeu milhares de ligações telefônicas, a maioria condenando o conteúdo.
Cinco dias depois da apresentação, Martin Denham, um jovem com distúrbios psiquiátricos, se suicidou. Sua família atribuiu a fatalidade ao programa e processou o canal, que logo se viu obrigado a revelar a verdade: o programa ao vivo, na verdade, havia sido gravado com atores, e os fenômenos não passavam de efeitos especiais. Mas o estrago estava feito. A BBC se retratou publicamente e Ghostwatch nunca mais foi ao ar na televisão inglesa. Foi banido por lá.
Fora da Inglaterra, contudo, o filme fez algum sucesso. O barulho em torno dele o elevou à categoria de cult, e Ghostwatch passou a circular pelos subterrâneos da cinefilia do horror. Não tardou para que chegasse às mãos de dois cineastas australianos, os irmãos Colin e Cameron Cairns, e para que influenciasse um roteiro no qual estavam trabalhando, de um filme chamado Late night with the Devil, ou Entrevista com o Demônio. “Ghostwatch é um filme incrível e obviamente tem o mesmo DNA do nosso”, afirmou Colin Cairns nesta entrevista.
De fato, assim como o filme britânico, o longa dos irmãos Cairnes – que estreia no Brasil em 4 de julho – se apresenta como um documentário. Na sequência de abertura, temos imagens que estabelecem o panorama histórico e cultural no qual o enredo se insere: a atmosfera de paranoia que se instalou nos EUA durante anos 1970, com a difusão do ocultismo e de seitas satânicas. Na voz de Michael Ironside (de Scanners, de David Cronenberg, e uma estrela do cinema de horror), a narração em off explica ser nesse contexto que surge o programa noturno de entrevistas Night Owls, apresentado por Jack Delroy (David Dastmalchian).
A atração havia sido criada para concorrer com The Tonight Show with Johnny Carson, um clássico (real) da TV estadunidense que permaneceu no ar por trinta anos. Ainda no prólogo/documentário de Entrevista com o Demônio, acompanhamos a luta de Delroy pela audiência; o programa faz sucesso, mas nunca chega a ultrapassar o rival. Também sabemos da vida pessoal do apresentador – de sua relação com uma ordem secreta, “O bosque”, e da morte de sua esposa em decorrência de um câncer fulminante. Chegamos, então, à noite de Halloween de 1977, quando iria ar uma edição especial de Night Owls. A audiência do programa vinha caindo e o apresentador prometia um episódio histórico. E tão perturbador foi seu conteúdo que se tornou maldito, jamais reprisado.
Neste momento, Entrevista com o Demônio abandona o documentário para assumir o formato de found footage, com a transmissão na íntegra do fatídico episódio, incluindo cenas de bastidores. A estrutura é o primeiro acerto do filme, pois, no momento em que de fato ele começa, nós já estamos envolvidos, absortos pela fotografia setentista de Matthew Temple e pelo desenho de som felpudo e cheio de chiados, como se viesse de um disco de vinil.
O magnetismo se intensifica quando Dastmalchian entra em cena. Célebre coadjuvante de filmes como Duna, Esquadrão Suicida e Oppenheimer, aqui ele está literalmente no centro dos holofotes e brilha como o apresentador disposto a tudo pelo topo do Ibope. Essa ambição, no entanto, ele a esconde atrás das máscaras ora de um simpático e divertido anfitrião, ora de alguém compreensivo e humano – ambas usadas com talento pelo ator. Seu rosto trágico e seus olhos negríssimos, capazes de absorver a luz ao redor, estão sempre em primeiro plano. E dizem muito, mesmo com ele em silêncio.
Em outras palavras, o filme logo nos tem em suas mãos. E sabe como nos manipular, como manipular nossas emoções. Em especial o riso e o arrepio, pois Entrevista com o Demônio se situa na arriscada fronteira entre o horror e o humor, da qual poucos filmes saem ilesos – um deles é O segredo da cabana, de 2012, dirigido por Drew Goddard, que, além de satirizar vários filmes do gênero, sabe causar seus próprios arrepios.
Quando tem início o show de horrores de Delroy, o humor prevalece. O médium Christou (Fayssal Bazzi) surge para falar com os mortos e seus métodos espalhafatosos dão indícios de se tratar de um charlatão. Entra em cena, então, o hipnotizador e cético Carmichael Haig (Ian Bliss), e outro contraste se estabelece no filme: a crença ou não no sobrenatural, oscilação que perdura ao longo da história. Mesmo contra as evidências cada vez mais incontestáveis em favor do inexplicável, Haig, que remete ao nosso saudoso padre Quevedo, busca a todo momento desmistificá-las.
A tarefa do cético fica mais complicada quando entram em cena a parapsicóloga June Ross-Mitchell (Laura Gordon) e Lilly (Ingrid Torelli), uma menina que escapou do suicídio coletivo de uma seita e estaria possuída pelo demônio. Quando Delroy pede que ambas encenem um exorcismo, o filme deixa o humor de lado e assume de vez o horror. É o início do extenso clímax da história, uma sequência que paga evidente tributo a O exorcista, mas que também remete a Poltergeist – pois culmina com uma manifestação demoníaca televisiva, marcada por interferências na transmissão e por correntes elétricas.
Os irmãos Cairns usam o formato de found footage para explorar à vontade essas referências, com efeitos práticos que atribuem ainda mais significado à cinematografia retrô. A dupla, no entanto, utilizou IA para compor algumas cenas na sequência de abertura, o que gerou muitas críticas e derrubou a avaliação do filme no Letterboxd.
Nos estúdios de Night Owls, em todo caso, as coisas vão bem. Nas conversas de bastidores entre Delroy e seu produtor durante os intervalos, vem a notícia: o episódio é um sucesso estrondoso. Lidera com folga a audiência. Não importam as tragédias ocorridas ao longo da transmissão; o dinheiro dos patrocinadores voltará e o fins justificam os meios.
À possessão de Lilly sucede um epílogo. É quando o filme, pela primeira e única vez, se dispersa. Na cadência do delírio de Delroy, busca-se amarrar algumas pontas entre sua ambição e sua vida pessoal, com atenção especial à morte da esposa. É um interlúdio frustrante, inserido justo quando Entrevista com o Demônio mais brilhava ao se concentrar em seus fascinantes espetáculos televisivos.
A cena final, porém, restabelece um pouco do brilho dissipado. E quando surgem os créditos, voltamos daquele universo ficcional satisfeitos com a manipulação que sofremos. Pendulando entre o riso e o arrepio, levamos na memória um filme divertido, coeso e certeiro nas referências. E que felizmente não corre o risco de ser banido em lugar algum.
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