De alguns tempos para cá, um movimento vem sendo observado nas Letras latino-americanas: narrativas sinistras de autoria feminina estão ganhando cada vez mais espaço no mercado editorial. Alguns jornalistas e críticos denominaram essa dinâmica como a de um “novo gótico” na região, reunindo, no mesmo locus horribilis, autoras tão diversas como as argentinas Mariana Enriquez e Samanta Schweblin, a mexicana Silvia Moreno-Garcia e a boliviana Giovanna Rivero, entre outras.
Por mais problemática que a generalização seja (voltaremos a ela mais adiante), é sintomática da força com que escritoras vêm povoando prateleiras, cabeceiras e, por que não?, nossos pesadelos.
Dos nomes mencionados, o de Enriquez é o mais proeminente. A autora natural de Lanús (nos arredores de Buenos Aires), cuja coletânea As coisas que perdemos no fogo já havia feito sucesso, foi finalista do prestigiado International Booker Prize de 2021 com outra coletânea, The dangers of smoking in bed (Os perigos de fumar na cama), ainda inédita por aqui. E o romance Nossa parte de noite, que acaba de ser publicado no Brasil, recebeu em 2019 o Herralde, um dos mais importantes prêmios de língua espanhola do mundo.
A obra relata a luta de um médium, Juan, para salvar Gaspar, seu filho, de um terrível destino envolvendo uma sociedade secreta, a Ordem. É uma história de estrutura ambiciosa e não linear, com partes que ora avançam, ora recuam no tempo. E tem proporções monumentais — são mais de 500 páginas. Ou seja, quase 20 vezes maior do que a média das narrativas de As coisas que perdemos no fogo. “Eu queria a experiência de um romance, com tudo o que ela contém de incertezas, dificuldades, arquitetura e imersão”, conta Mariana Enriquez para a coluna. “Fazia tempo que eu estava escrevendo textos breves ou de não ficção, e precisava dessa dedicação de anos que envolve a escrita de um romance, pelo menos para mim.”
Assim como a maioria dos contos da autora argentina, Nossa parte de noite é, na essência, uma história de horror. De acordo com ela, as quatro partes que compõem o romance são guiadas por “estilos sutis” das narrativas sinistras: na primeira, temos uma espécie de road movie com um desfecho de “folk horror lovecraftiano”; a seguir, uma segunda parte “mais [Stephen] King”, que acompanha um grupo de adolescentes realizando descobertas assustadoras; uma terceira parte com ares de “horror vitoriano” e uma última que remete a histórias iniciáticas e se conclui em horror ocultista.
Expoente do neofantástico
Nesse sentido, Enriquez se afasta de autoras como Samanta Schweblin e Giovanna Rivero. Schweblin — que no Brasil publicou a coletânea Pássaros na boca, a novela Distância de resgate e o recém-lançado romance Kentukis — é considerada uma das principais herdeiras de grandes nomes do chamado neofantástico latino-americano, como Jorge Luis Borges, Bioy Casares e sobretudo Julio Cortázar. O termo foi concebido pelo crítico literário argentino Jaime Alazraki para designar um tipo de ficção que subverte o real discreta e lentamente, em um procedimento diverso da súbita ruptura muitas vezes encontrada em obras do fantástico “tradicional”.
Esse é o caso de Schweblin, cujos contos partem de situações cotidianas para, pouco a pouco, adentrar o terreno do impossível e, com alguma frequência, do aterrorizante. O fantástico, então, torna-se normalizado, sendo incorporado ao paradigma do real nesses universos ficcionais.
Na tensa novela Distância de resgate, tal procedimento ocorre desde o início: a narradora e protagonista conversa com um suposto garoto morto sobre ocorrências perturbadoras envolvendo ela e a filha. Já no romance Kentukis, mais próximo da ficção científica, Schweblin explora nossa obsessão com tecnologia e voyeurismo virtual para compor um retrato tão divertido quanto perturbador dos tempos atuais.
À boliviana Giovanna Rivero, por outro lado, já se atribuiu o papel de atualizar o colombiano Gabriel García Márquez em uma chave de “fantasia gótica”. No entanto, os contos da coletânea Terra fresca da sua tumba, lançado no Brasil em 2021, têm no corpo humano uma tônica dominante: o estupro, as doenças, os desejos e a morte permeiam a prosa elegante da autora, que nem sempre adentra o território do insólito e do realismo mágico consagrado pelo autor de Cem anos de solidão.
As narrativas de Rivero se vinculariam mais ao horror corporal, de que tratei na coluna de julho; ou, melhor dizendo, a uma perturbação corporal, já que elas não carregam a vibração e a intencionalidade do horror.
Outras formas do fantástico
Até aqui, observa-se nessas autoras — com exceção de Enriquez — pouco da ficção gótica e de suas características definidoras que, de acordo com os principais pesquisadores do tema, são: o espaço/território amaldiçoado (castelos, depois casas assombradas), a presença fantasmagórica do passado e as personagens monstruosas.
Claro que uma leitura atenta das obras de Rivero e Schweblin eventualmente revelará, nelas, um ou mais desses elementos. No entanto, isso nos parece insuficiente para agrupá-las na categoria do gótico como expressão estética. E menos ainda do gótico como fenômeno cultural e literário relacionado a um período determinado (séculos 18 e 19) e a localidades específicas (Inglaterra e, a seguir, Europa ocidental).
A exceção é Gótico mexicano, que, como o título evidencia, abraça tanto a poética quanto o fenômeno cultural góticos. O romance de Silvia Moreno-García leva-nos ao México da década de 1950 e é protagonizado por Noemí Taboada, uma jovem socialite. Ela é enviada pelo pai a uma mansão nas montanhas para descobrir o que acontece à prima Catalina, que parece doente. A protagonista então se vê em meio à sinistra família de Virgil Doyle, o sedutor e enigmático marido de Catalina; também testemunha estranhas ocorrências envolvendo epidemias e doenças inexplicáveis.
Há uma interessante gradação de intensidade nos horrores apresentados, mas o romance tem mais problemas do que qualidades: a construção de personagens é frágil, a escrita carece de força e a sensação de déjà vu é recorrente — um risco inevitável quando se adota fórmulas de dois séculos e meio de vida para elaborar um romance.
Em Nossa parte de noite, há, sim, alguns marcadores góticos. O tópico da casa assombrada, relacionado ao locus horribilis, tem destaque no romance; nas quatro partes da obra há casas aterrorizantes, que ora são palco de rituais macabros, ora figuram como portais para outras dimensões. Temos, também, personagens monstruosas, essencialmente cruéis — como Mercedes, uma das líderes da Ordem.
Entretanto, para além da estrutura que dialoga com diferentes correntes do horror, o livro de Mariana Enriquez apresenta, acima de tudo, a intencionalidade que caracteriza o gênero. A obra é permeada por imagens inesquecíveis e assustadoras. De acordo com a autora, elas surgem “quase como uma intuição, sem detalhes, e durante a escritura os detalhes crescem e se potencializam”.
O trabalho de Enriquez com o sobrenatural também é distinto daquele de Schweblin ou Rivero. O inexplicável manifesta-se como que à moda antiga, do fantástico oitocentista. “A minha influência é a do estranho que rompe com a realidade; eu nunca poderia normalizá-lo e muito menos torná-lo ‘maravilhoso’. Simplesmente não é o que me interessa, porque me parece que, hoje, o fantástico se pode contar de outras formas”, afirma ela.
“Outras formas” do fantástico vem bem a calhar. Pelas múltiplas possibilidades que carrega, a expressão talvez seja mais apropriada para entendermos o vibrante movimento atual, no qual Enriquez, Schweblin, Rivero, Moreno e outras autoras têm encontrado maneiras de expressar, em suas obras, o assombro e o maravilhamento de se ser latino-americano.
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